Ao Aurélio Furdela
Lucílio Manjate - Maputo
A epistemologia que conferiu à ciência a exclusividade do conhecimento válido traduziu-se num vasto aparato institucional – universidades, centros de investigação, sistema de peritos, pareceres técnicos – e foi ele que tornou mais difícil ou mesmo impossível o diálogo entre a ciência e os outros saberes.
Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses
In Epistemologias do Sul, 2009
O problema é que o grosso dos países africanos têm cultura ágrafa, e eu pergunto: antes da chegada dos colonialistas, não curávamos a malária ou ela não existia? Havia dentistas no século treze? O preto não sofria de dentes? Só começou a sofrer de dentes depois da colonização? Mas como nós não tínhamos escrita, isso trouxe o problema da aculturação, da rejeição da cultura. Diz-se ser um mundo supersticioso e eu digo não, esse mundo supersticioso tem o seu quê de racionalidade, para sustentá-la, vi que a literatura é um caminho, e quem abriu esse caminho foram os latino-americanos, eles tomaram aquilo que os ocidentais consideraram irracionalidade como uma base para racionalidade própria.
Ungulani Ba Ka Khosa,
In Proler, n.0 3 Março/Abril 2002, “Somos um país promíscuo” – Entrevista
Uma, entre outras questões que se colocam ao ler-se o último romance de Ungulani Ba Ka Khosa, Choriro, é sobre o conhecimento. Trata-se de um apelo a uma discussão epistemológica sobre os desafios que se colocam, num primeiro plano, à ciência histórica, essa narração metódica de passados, na produção do conhecimento a partir de um olhar local, de dentro. Esta proposta pode ler-se na nota que Khosa faz questão de colocar no livro:
“Este retrato de um espaço identitário, de uma utopia que se fez verbo, assentou na rica e impressionante História do vale do Zambeze no chamado período mercantil. A intenção do livro foi a de resgatar a alma de um tempo, a voz que não se grudou aos discursos dos saberes. O fundamento histórico valeu-me como porta de entrada ao mundo de sonhos e angústias por que o vale do Zambeze passou durante mais de quatro séculos…”
Choriro, um lamento, uma espécie de exorcismo ao “epistemicídio”[1] africano; um discurso que procura resgatar essas vozes abafadas, silenciadas ao longo do processo de produção desse conhecimento que temos sobre nós próprios e sobre outros.
Subjaz neste projecto um fundamento existencialista, a ideia de que o facto dessas vozes vincularem-se ao universo da oralidade não lhes permite afirmarem-se como um discurso válido e promotor de um conhecimento produzido a partir de dentro. Isto significa, ironicamente, que “os discursos dos saberes”, a que Khosa se refere em alusão à epistemologia promovida pelo Ocidente, produziram e promoveram um conhecimento sobre a “nossa” realidade a partir de fora, portanto, não intercambiando os afectos, não ouvindo essas outras vozes, exactamente pela sua natureza ágrafa, imprecisa e dúbia.
Assim se entende por que, em Choriro, os afectos em relação aos objectos observados são potenciados num jogo de racionalidades que se negam, alegorizando formas variadas de conhecer e teorizar o próprio conhecimento. Veja-se o exemplo:
“Em geral, os indígenas, nas frequentes e animadas conversas em volta da fogueira, de tanto acharem natural a beleza circundante, não se extasiavam com o intermitente luzir dos pirilampos, a miríade de estrelas abarrotando o céu, o sussurro das folhas das árvores, ou o longícuo rugir de um leão na savana dos predadores da noite. Eles pasmavam-se com o encantamento de Chicuacha [o padre branco] ante o nascimento, na entrada abrupta da noite, das ilhas de fogo com que os canoeiros e carregadores pintavam as noites ao longo do leito do Zambeze. Na escuridão das águas, era-lhe possível observar os intrigantes olhos dos crocodilos que à direita e à esquerda perscrutavam os movimentos humanos. Seguros nos pequenos e confortantes pedaços de terra, os canoeiros pouca atenção prestavam aos reptéis das águas. Estes, silenciosos, reluziam os olhos enquanto as línguas de fogo iam, aos poucos, fenecendo com a madrugada que ia abatendo as estrelas.” – p. 20.
A naturalidade com que os indígenas observam a realidade circundante, a ponto de se imiscuirem nela como um todo harmonioso – repare-se que canoeiros e carregadores deixam-se estar serenos no leito do rio, partilhando as mesmas águas com os crocodilos – é antítese da artificialidade estampada no olhar de Chicuacha, para quem essa aliança não só não faz sentido como é perigosa. Mas é exactamente a essa aliança a que Etounga-Manguelle (1991) se refere ao tentar caracterizar os valores de África, os quais, exactamente por serem consubstanciais a tudo a que a África diz respeito, caracterizarão a forma como o continente deverá (re)produzir um conhecimento localizado. Essa epistemologia, entre outros valores, será caracterizada por “uma inserção pacífica com o meio ambiente”[2]. Mas o que se entenderá por tal inserção?