Sábado, 17.09.11

Mabulu iku Yakana - Entrevista sobre uma radionovela

Eduardo Quive - Maputo

 António Novela, jornalista e produtor de rádio

António Novela é profissional de rádio. Trabalha há mais de 20 anos no emissor provincial de Maputo, da Rádio Moçambique (RM), o mais antigo e maior canal de rádio no País. É jornalista, detrás dessa carreira esconde-se um grande escritor de novelas. Nos programas, é um dos produtores do “Mabulo iku Yakana” que, quando traduzido literalmente para a língua portuguesa, significa “conversando se constrói”, muito conhecido no Sul do País, concretamente nas províncias de Maputo e Gaza. Trata-se de um teatro radiofónico que retrata problemas sociais do quotidiano, transmitido nas noites de domingo na emissora em changana, língua predominantemente falada nas províncias acima referenciadas. Dada a popularidade do programa, decidimos ter com este profissional dois dedos de conversa, aliás, trata-se de uma entrevista em que António Novela fala da génese do programa, e dos pontos que marcam a sua carreira. Tendo em conta o período em que inicia o programa, e as estórias que já contou aos ouvintes, pode-se considerar este um escritor e novelista, se calhar com maior produção em Moçambique. António Novela nos revelou que o Mabulu iku Yakana, foi criado antes da sua entrada na rádio, isto é, pode ter tempo maior que a sua estadia na rádio.

 

 

 

publicado por Revista Literatas às 11:32 | link | comentar

“Exerço a escrita como ofício”

Amosse Mucavele- Maputo

 

Uma notícia biográfica, por ele mesmo [agosto/2000]: Cláudio Portella, 27 anos. Escritor e Poeta. Legítimo representante da vanguarda contemporâneo na poesia brasileira. Nunca pertenceu a grupos. Acredita que a poesia atual, pois para ele nada é novíssimo, possui como característica o individualismo. Não o individualismo transparente, do qual refere-se Allen Ginsberg, quando interrogado acerca do que seria nudez na poesia, e esse imediatamente tirou a roupa.

Ointimismo de Cláudio Portella, não é coeso, não é translúcido, não é emblemático, não é panfletário. Mas falho, caótico e doentio. Sua poesia busca cobrir a falsa moral, desdizer o lengalenga dos intelectuais, dos doutos que apontam os falos alheios comparando-os aos seus.

A poesia de Cláudio Portella é uma velhinha de 4000 anos, que sobe ao palco para declamar seus versos, de botas, gibão e guarda-chuva.

Entre suas publicações significativas, figura a de Choque-de-chuveiro-elétrico (poema onde trabalha o verbo algo) no Suplemento Literário de Minas, Gerais um dos mais respeitado do país.

 

Literatas: Nainfânciaqualfoi o seu primeiro con­tacto marcante com com aescrita?

 

Cláudio Portella

CLÁUDIO PORTELLA: Aos domingos costumava anotar toda a programação da TV. Eu me preparava com papel e caneta numa estante próxima à TV e ficava anotando o nome de cada programa que ía passando. Éprovável que esse tenha sido meu primeiro contato marcante com a escrita. Pensando melhor eu já naquela época estava exercendo o jornalismo. Minha literatura tem grande influência do jornalismo impresso. Tanto é que já há alguns anos venho praticando o jornalismo literário.

 

Literatas: Que espaço os livros ocupam no seu dia-a-dia? A leiturade algumaforma, influênciano seu trabalho e no seu quotidiano?

 

CLÁUDIO PORTELLA: Os livros são meus materiais de tra­balho. Trabalho com livros todos os dias. Estou sempre lendo. Ler e escrever são as atividades que mais me dão prazer. Como sou jornalista literário os livros fazem parte do meu trabalho e do meu cotidiano.

 

Literatas: Oescritor peruano Mario Vargas Llosacertavez disse o seguinte “aminhapassagem pelo jornalismo foi fundamentalcomo escritor.” Como porta-voz dasociedade você percebe naliteraturaou no jornalismo umafunção definidaou mesmo práctica?

 

CLÁUDIO PORTELLA: Creio que assim como o Vargas Llosa minha literatura tenha uma dívida com o jornalismo. Falar de uma função e da praticidade da literatura e do jornalismo não é fácil. Acredito que tanto a literatura como o jornalismo tenham muitas funções e muita praticidade. Aliteratura é mais introspecta que o jornalismo, serve mais ao espírito. O Jornalismo é mais cerebral e combativo. Tanto é que a imprenssa é tida como o quarto poder depois do Executivo, Legislativo e Judiciário.

 

Literatas: Quais são os autores imprecindiveis nas sualeituras como escritor e leitor? Equais nuncam o abandonam?

 

CLÁUDIO PORTELLA: Deste a infância sempre gostei de ler. Sou um leitor versátil. Leio os clássicos mas não me bitolo à eles. Imprecindível é uma palavra perigosa. Como leitor gosto muito da poesia de Fernando Pessoa e da prosa de Machado de Assís. Como escritor busco permanecer no meu  caminho próprio e aí não sou abandonado pelas leituras, eu as abandono.

 

Literatas: Neste mundo cadavez mais globalizado, tão afeito ao imagético, com um nívelelevado de analfa­betismo, e com umadiversidade culturalabragente. Oque te levaadedicar-se aarte de escrever numaeraonde ler um livro não é apalavrade ordem?

 

CLÁUDIO PORTELLA: Não exerço a escrita como arte, mas como ofício. Se minha profissão é escritor, então: escrevo! Se minha escrita despertar inter­esse, que leiam então.

Literatas: Oescritor angolano José Agualusadisse certavez que “o escritor africano deve sair do gheto”, sendo o escritor avoz dos que não tem voz, asuainter­venção socialnão só deve cingir-se aescritanum país com baixos niveis de leitura, o escritor deve se expor nasociedade, comungadamesmaideia? Oser escritor compensa? Equalé o papeldo escritor?

 

CLÁUDIO PORTELLA: Sou plenamente de acordo com José Agualusa. Todo escritor deve sair do gueto e mostrar a cara, dizer a que veio. O trabalho do escritor não e somente escrever, mais também participar de debates, dar ent­revistas e opinar sobre o mundo etc. Ser escritor é uma profissão recompensadora, sim! O escritor deve escrever e opinar sobre as coisas do mundo.

 

Literatas: A línguanos une, mas continuamos muito dis­tantes um do outro, em termos globais qualé o estado cliníco daliteraturade expressão portuguêsa? Eo que aliteraturado seu país recebe dos outros quadrantes lusófonos, concretamente os africanos, refiro-me aliteraturamoçambicana, angolana, guineense, cabo-verdianaetc.

 

CLÁUDIO PORTELLA: A literatura feita em língua portuguesa, sem dúvida, é uma das mais fortes. Acredito que no momento atual a litera­tura brasileira não tenha influência nenhuma da literatura africana de língua portuguesa. É lamentavel, mas o mercado editorial brasileiro desconheçe a literatura de língua portuguesa feita na África.

 

Literatas: Se em Moçambique, Angola, Cabo-Verde, São-Tomé, Timor Leste etc, o grande problema que cruz ao caminho do escritor é encontrar uma Editora onde possa publicar o seu trabalho, e em seguida alguém que compre e lê a mesma, creio que em Portugal e no Brasil acontece o inverso. Ou seja, compreende-se que as possibilidades de publicação, nesses dois países, são bem maiores que as nossas, com isso, não corre-se o risco de se ter muita obra imatura nas prateleiras. Qual a sua opinião sobre isso?

 

CLÁUDIO PORTELLA: Certamente o mercado editorial de Portugal e do Brasil oferecem maiores oportunidades de publicação que o mercado Africano. Meu primeiro livro foi publicado por uma editora de Portugal. Mas o fato desses mercados serem mais activos do que o africano não quer dizer que seja uma maravilha. Tanto em Portugal como no Brasil (acredito que ainda mais no Brasil) os escritores (sejam eles iniciantes ou veteranos) tem dificuldades de encontra­rem editoras para os seus livros. A auto publicação ainda é uma alternativa cada vez mais forte. Quanto a imaturidade dos autores e suas obras isso é uma questão que depende de mercado. É uma questão do autor saber se já está pronto ou não. Aconselho que o autor submeta sempre seu livro a avaliações antes de publicá-lo.

 

Literatas: Que obra de um escritor de qualquer quadrante do mundo que os moçambicanos deviam ler urgentemente? E como formar leitores?

 

CLÁUDIO PORTELLA: Nenhuma leitura deve ser imposta como urgente­mente necessária. Necessidade e urgência na leitura é uma descoberta pessoal e individual de cada um. Facilitando o acesso ao livro. Melho­rando a renda per capita, dimuíndo o preço do livro, levando o livro até o povo. Aqui no Brasil costumamos dizer que o artista deve ir a onde o povo está. O livro deve ir a onde o povo está. Por que não distribuír bons livros para o povo?

publicado por Revista Literatas às 11:21 | link | comentar
Quinta-feira, 25.08.11

“A poesia não está fora de nós, nós é que inventamo-la”

Amosse Mucavele - Maputo
Literatas: O Lucílio Manjate começa a escrever em 1996. Porquê, para quê e para quem?
Lucílio Manjate: Penso que os escritores nunca sabem quando é que começam a escrever, porque sendo o acto da escrita um processo, que se liga a um outro processo, o da leitura, nós vamos escrevendo enquanto lemos, mas não registamos. É uma escrita ao nível do subconsciente, do íntimo, e que vai ganhando forma durante um tempo também impreciso, o tempo de gestação do escritor. É o tempo da criação da forma e que um dia vem cá para fora; no meu caso isso aconteceu em 96. Penso que nessa altura eu escrevia porque tinha que me situar, em termos geográficos, culturais, políticos, ideológicos, etc. Talvez seja o primeiro passo, esse. Essa é a leitura que faço hoje, lendo os meus textos um pouco mais crescido; escrevia para, a partir desse pressuposto identitário, inventar os meus sonhos, como todos os outros escritores inventam, e comunicar esses sonhos aos receptores dos meus textos. Partilhar um mundo possível.
Literatas: Sugere que o escritor não nasce numa folha em branco cheia de gatafunhos?
Lucílio Manjate: Exacto. Podemos entender essa questão como quisermos, eu penso que no papel ele apenas acontece. Perguntar quando é que o escritor nasce é sugerir uma discussão filosófica interessante, porque o texto primeiro acontece enquanto ideia, o embrião, e isso é na nossa mente e não fora dela. A metáfora de “nascer” aqui não pega, porque o ser humano vem para a luz, mas a luz do escritor está dentro dele, nunca fora. O homem sai da escuridão para a luz. O escritor faz o inverso, da luz para a escuridão. Talvez por isso queremos sempre voltar para esse mundo de luz, e procurámos como loucos um papel em branco para acender a escuridão que nos persegue.
publicado por Revista Literatas às 13:05 | link | comentar | ver comentários (1)
Terça-feira, 26.07.11

«O Carrossel de Lúcifer» - uma visão do mal como acto estratégico de Deus

Capa-O Carrossel de Lúcifer

 

PJ: Antes de mais nada começo por lhe pedir que desmonte o título do seu livro – «O Carrossel

de Lúcifer».


VE: Pensei que podia dar uma boa capa (risos). Na verdade, foi um desafio para a Bertrand: como interpretar no plano gráfico um título destes de forma a evitar um posicionamento transversal? Já vi o livro em pelo menos duas livrarias de renome na secção da ficção estrangeira em inglês, ou seja, por traduzir, na categoria de terror... Bom, pelo menos estava ao lado de Stephen King (risos). O que quero dizer, ao contar este episódio que faz ressaltar a dificuldade que alguns livreiros têm em catalogar o livro (e ainda bem que assim é), é que o título é deliberadamente provocador, porque é esse o seu mote mas no sentido de induzir no leitor sentimentos diversos, dúvidas, interrogações. Afinal, do que trata este romance? Porque lá dentro, cada leitor pode encontrar vários caminhos, várias interrogações, e catalogá-lo como bem entender. E é esse precisamente o objectivo da narrativa: não ser simplista ao ponto de se descobrir nela uma única camada de leitura, mesmo correndo o risco de a envolver numa forte carga simbólica. Para isso, precisava de ter um título que não fosse redutor, que traduzisse na medida do possível algumas ideias centrais, o fio condutor de uma história em aberto que espero que possa ser lida de modos bastante diferenciados. Agora, é óbvio que eu tenho a minha leitura pessoal do título, que presidiu à sua escolha, embora, como disse, fico feliz que outros o desmontem doutra maneira. Assim, e respondendo finalmente à sua questão, para mim, o título «O Carrossel de Lúcifer» remete acima de tudo para a luta entre o bem e mal, usando dois universos: o das crianças, simbolizado pelo carrossel, e o mundo dos adultos (um mundo manietado por Lúcifer, o Diabo, como metáfora da descida aos infernos que é preconizada por algumas personagens do romance). Uma segunda abordagem possível é a ideia da desordem, do caos, das doenças da sociedade moderna, não só no sentido patológico mas também metafísico. No fundo, é uma síntese possível da descrição de uma cosmogonia que vê a realidade, o nosso quotidiano, como o próprio Inferno, como um carrossel desgovernado em que todos somos obrigados a andar, em círculos, como se se tratasse de uma condenação dos seres humanos. E daqui resulta a segunda provocação que se segue ao título: «uma visão do mal com acto estratégico de Deus”.

 

 

 

publicado por Revista Literatas às 08:48 | link | comentar
Quarta-feira, 22.06.11

Cabo Nelci Nunes, um romancista poeta


14/06/2011 - Poetas Del Mundo - Brasil

Um romancista poeta ou um poeta romancista. É assim que o Cabo Nelci José Nunes Silva, mineiro de Belo Horizonte, se autodefine. Contrariando aqueles que não acreditam na sensibilidade de um policial militar, o escritor contemporâneo mostra a sua verve literária em obras como Tarumirim, A Cabeceira e muitas outras,  com o mesmo potencial para entreter e emocionar o leitor.

Com 43 anos de idade, 24 deles dedicados à Corporação, Nelci está, atualmente, atuando no Centro de Referência, Controle e Tratamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis – CRCT-Aids, unidade instalada no Hospital da Polícia Militar – HPM, onde é reconhecido como um profissional competente. Nelci é casado com a secretária Nardélia Silva Ramos e tem dois filhos, Alexander, de 17 anos, e Henrique, de oito, que considera as suas maiores e melhores obras.
“Minha predileção pela literatura não interfere nas atividades de policial militar, pelo contrário, contribui para que eu entenda melhor o comportamento humano e os mais diferentes problemas que, cotidianamente, surgem no meu turno de trabalho”, ressalta. “Sou um escritor que, como tantos outros, observa o dia a dia das pessoas para se inspirar. Alguns dos meus poemas e contos são frutos do que ocorre em uma determinada época, que pode ser no passado, presente ou futuro”, destaca.
OBRAS
O seu primeiro trabalho – Tarumirim -, escrito aos 18 anos, continua engavetado até hoje, “por falta de patrocínio”, explica. Mas essa mesma obra, que está sendo revisada e ampliada pelo próprio Nelci Nunes, será, finalmente, publicada no ano que vem. “Com recursos próprios”, garante o poeta. “Infelizmente, os escritores desconhecidos do grande público sofrem esse estigma, que só é vencido quando o sucesso vem.”
A sua segunda obra, no entanto, teve destino diferente, uma vez que o romance A Cabeceira, publicado em Fevereiro de 2010, esgotou em apenas um mês. “Foi um sucesso de aceitação, que me deu muita alegria”, exprime o escritor. O livro Histórias Inanimadas  também lhe trouxe uma surpresa: recebeu, em 1998, uma apreciação especial do ex-presidente da República e então senador José Sarney, que escreveu: “Li o seu conto com o máximo interesse, e lembrei-me do escritor Edgar Allan Poe, em sua obra Histórias Extraordinárias. Bravo!”.
Uma das maiores alegrias de Nelci Nunes ocorreu, em maio deste ano, quando foi aprovado, em primeira sessão, para assumir uma cadeira na Academia de Letras João Guimarães Rosa, da Polícia Militar de Minas Gerais. “Foi uma das melhores coisas que me aconteceu na vida”, garante. Mas, não é só isso. O autor é o terceiro praça a entrar para ALJGR e também o primeiro cabo a merecer a honraria.
Inspirado em autores como Machado de Assis, Érico Veríssimo e Humberto de Campos, brasileiros, e no português Éça de Queiroz, Nelci tem, também, predileção por escritores estrangeiros, como o irlandês Jaimes Joyce. “Eles são os maiores do Planeta e merecem ser lidos e relidos, sempre.”
Essa admiração por grandes autores, Nelci percebeu que existe  por todos os lugares que passou, como a Academia Municipalista de Letras, que o convidou para ser um de seus membros e ele não aceitou. “Na época, não estava preparado”, modestamente, recorda. “Mas, hoje, estou”, completa.
CONTOS
Como é autodidata, a exemplo do também escritor português José Saramago (in memoriam), o policial militar se enveredou também pelo caminho dos contos e, impulsionado pela vida na caserna, escreveu O Menino, “um suspense de excelente qualidade, segundo os leitores”, ressalta. Posteriormente, veio o policial O Caminho, história que remonta os idos de 2001 e trata de roubos ocorridos em Belo Horizonte. Esse conto ganhou o 1º lugar, como convidado, de um concurso da Academia Municipalista de Letras.
Nelci Nunes escreve para todo o tipo de leitor, desde o mais exigente até o mais simples. Seu trabalho agrada ,principalmente, a quem procura escritores emergentes em bienais e em projetos como o Sempre um Papo, levado ao público no Palácio das Artes, em bares temáticos da cidade e até em alguns programas de televisão.
Para conhecer melhor o escritor, o caminho mais curto  é adquirir uma obra sua ou acessar o site www.muraldoescritor.com.br, onde, com frequência, o policial militar publica trechos de seus livros, com o pseudônimo Nelci Nunes, o Falador. (Alexandre França)


POEMA AZUL
                                                                                         
Dedicado a umas 'divisões' de mãe...

Rompe de encontro ao vento; ela, de olhar faceiro,
Sempre reunindo forças, e; com o sol renasce, não é pose,
Labor suave de pensamentos, versos, fábula...
Nesta sua recôndita poesia de fina ternura, reúne,
Mar, elementos, vozes, brilho; a mãe e o gesto de amar.
Tins... Parintins, seu coração é a Festa de Parintins,
Dos bois, em lugar algum não há, mais enfeitados.
Santa festeira, mãe que encanta. É sílaba solta, San...
Tosse discreta, caso de se fazer presente, cantos,
Tantos festejos, bumbo, tambores, tarol e tan-tan...
Nus, anjos, Barroco; mãe valorosa; filhos, anjos nus.


QUANDO A SORTE VOA
                                                               
Saio à noite.
Ando sem rumo,
O casario passa por mim,
Segue lento, mal iluminado.

Mordo algumas pulgas,
Em busca do tempo perdido,
Teria sido mais feliz,
Depois do primeiro passo atrás.

Estou sendo fumado pelo tempo,
Lembranças monótonas, ruins.
Os mortos não sossegam de dia.
Viajam cada vez mais vivos,
Entre um silêncio e outro.

Aqui é proibido fumar.
Este depenado companheiro,
Solidário, traga-me aos poucos.
Viajo escondido na sua fumaça,
Incrédulo, desapareço em plena luz diurna...
publicado por Revista Literatas às 08:18 | link | comentar
Terça-feira, 17.05.11

Respiro poesia pela manhã, à tarde, à noite e de madrugada


Entrevista concedida a


Demetrios Galvão e Luiz Valadares Filho



Luiz Valadares Filho 1- O teu nome “Du Nascimento” tem algo de afrancesado? Nos fale um pouco a respeito disso.

Rubervam Du Nascimento: Du é um jogo sonoro inventado a partir do modo como pronunciamos as palavras. Nunca ouvi ninguém dizer por aqui “do”. Do é outra coisa que ao ser pronunciado ganha um acento que não existe, um acento imaginário que o empurra para outro significado. Du acompanha a voz de Ru do início do meu nome. Uma homenagem, digamos, ao som produzido pela voz de nossas letras e palavras. Nada a ver com o francês. Du é um dado a mais que contribui para a possível decifração dos enigmas que cercam a minha poesia. Funciona como uma espécie de anagrama. Du é de um atrevimento sem tamanho. Com ele posso provocar Deus. Du também vem de Deus. Basta excluir duas letras. Com o Du me coloco ao lado da criatura divina embriagada de sopro de fogo e me transformo em criador. Afinal de contas é por demais inquietante quando o extraordinário poeta chileno Vicente Uidobro escreve que “ todo poeta é um pequeno Deus”.

LVF 2- Quando você começou a se descobrir como poeta? Quais suas primeiras tentações poéticas?

Rubervam Du Nascimento: no início foram os livros bíblicos que me chamaram a atenção. Aliás, único conjunto de livros que ocupava espaço na casa onde vivi a infância e o começo da adolescência. Principalmente os livros de Isaias, Ezequiel, Daniel, Malaquias e Apocalipse que me despertavam uma espécie de ira sagrada ao lê-los. Ficava com um gosto de vinagre apodrecido na boca quando devorava seus versiculos. Gostava de ficar viajando com as imagens que esses livros me traziam. Para tentar compreendê-los decorava capítulo por capítulo e ficava dizendo em voz alta, trancado em meu quarto. Mas os livros que me despertaram para a poesia foram Os Lusíadas, que encontrei entre outros livros empoeirados, e pastas e papéis inúteis numa espécie de biblioteca abandonada no prédio do ginásio onde estudava, e um livro de poemas estranhíssimos que me chegou às mãos através de um professor de português chamado Ildegardes: O Guesa Errante. Era adolescente, nessa época, tinha quinze anos e ao invés de ir passear na praça, namorar, ficava em casa lendo os livros da Bíblia, Sousândrade e Camões. Depois desse encontro, comecei a rabiscar alguma coisa que pensava tratar-se de poesia, mas não era, apenas rascunho que foi parar na cesta de lixo, ou no fogo. Gosto de ver meu poema pegar fogo, virar chama e depois cinza. Alguns deles, purificados, voltam aos pedaços em versões posteriores. Outros desaparecem para sempre do meu caderno de memórias. Nessa época escrevi um poema chamado: deslumbramento que uma professora de português elogiou na sala de aula, chamou de poesia. Até hoje guardo cópia, mas jamais será publicado. Embora seja um poema de forma livre, é muito ruim, de linguagem pobre, coisa de iniciante, muito parecido com a maioria do que é veiculado e que abarrota os espaços da internet e que chamam de poesia.

LVF 3- Fale sobre os poetas e a poesia de sua geração e comente um pouco sobre sua participação na coletânea “ponta de lança na praça”?

Rubervam Du Nascimento: mantenho contato com vários autores brasileiros e estrangeiros, principalmente da América Latina. Com esses autores troco além de correspondência, poemas. Dessa forma alguns me pedem autorização para incluírem meus poemas em livros ou para serem editadas em jornais ou blogs. Assim aconteceu com a coletânea: ponta de lança na praça, editada pelo poeta Guido Bilharinho, de Uberaba/MG, na década de 1980, o mesmo que publicava a famosa revista: Dimensão. A linguagem do longo poema incluído na coletânea já indicava inquietações éticas e por que não dizer, estéticas, que somente hoje estão em volga: a nossa sobrevivência, numa sociedade que parece ter esquecido que somos apenas formiguinhas entregues ao mar de águas que a cada virada de estação causa um dilúvio de calamidades, ao invadir a pequena extensão de terra que nos resta para sobreviver, por conta dos maus tratos que cometemos contra a natureza e o ambiente das cidades. Quanto ao poetas de minha geração, gosto de alguns, de outros não, Sem citar nomes, penso que alguns não evoluíram. De qualquer modo, não tenho dúvidas de que se trata de uma geração que é a pedra do sapato dos críticos e estudiosos do assunto. Posso garantir que são mais de meia dúzia os poetas que se firmaram e podem ser considerados bons poetas, alguns com trabalhos editados que verdadeiramente se sustentam como livros dignos de leitura e reflexão.

Demetrios Galvão 4 - Que importância tem a poesia na sua vida e no seu cotidiano?

Rubervam Du Nascimento: além do ofício de poeta, exerço no dia a dia outra profissão, que nem sempre me dá folga para o exercício da poesia na hora em que bem entendo, posso dizer que respiro poesia pela manhã, à tarde, à noite e de madrugada. De segunda à sexta e nos fins-de-semana. Sou um poeta que vive a poesia durante quarenta e oito horas diárias. Não que eu considere tudo que eu vejo como matéria poética. Alguma coisa que a gente encontra em nosso caminho a gente tem que empurrar para o lixo. Não pode ser traduzido por poesia, nem pode terminar em poema. Qualquer tentativa forçada do poeta com material não poético pode danificar o poema e torná-lo objecto escrito imprestável. Posso dizer que o substrato principal dos meus poemas vem do meu olhar atento, mas selectivo do comportamento humano, dos livros, revistas e jornais que leio, das pesquisas e interpretações históricas, sociológicas, antropológicas que faço.

LVF 5- Eu tive o prazer de assistir a um espectáculo seu no Teatro 4 de Setembro “A Profissão dos Peixes”, referente ao seu primeiro livro. Fala da tua relação com o teatro.

Rubervam Du Nascimento: fiz curso de teatro no Rio de Janeiro com o mesmo grupo do Fulvo Stefanini, José Wilker, Rosa Maria Murtinho e outros que hoje são artistas famosos. Vim para o Piauí, tive algumas experiências nesse sentido, mas resolvi parar de fazer teatro. Afinal de contas descobri que escolher esta distanteresina para fazer arte, principalmente, é escolher um limite. Não se pode querer fazer uma porção de coisas ao mesmo tempo, pois se corre o risco de fazer-se tudo mal feito. Andei escrevendo uns contos, algumas peças de teatro, iniciei um romance, mas acabei firmando compromisso apenas com o exercício poético. Preferi a poesia, apenas a poesia, por entender como Torquato Neto que a poesia é a mãe das artes, das arte/manhas e das armas de hoje e de amanhã. O espetáculo poético-musical que chamei de “corpo-a-corpo”, reuniu a espinha dorsal do livro: A Profissão dos Peixes, levado a treze cidades brasileiras, em 1987. De Cruz das Almas/Ba, passando por Belo Horizonte, Rio, São Paulo, capital, Ourinhos/SP, Londrina/PR, Curitiba e por último, o que eu denominei de “Peregrinação Poética”, em Paranaguá/PR, sempre contando com a articulação de pessoas ou grupos de poetas com os quais mantinha contato. Lembro de uma dessas apresentações como um momento inesquecível, tanto pelo clima mágico que se formou no local, cujo teto era uma lua enorme no céu escuro, quanto pela interacção do público, praticamente formado por poetas e artistas, com os poemas lidos, no pátio aberto de uma Casa de Cultura em Cruz das Almas, interior da Bahia, onde anteriormente funcionou uma cadeia pública. O pátio serviu no passado para os presos tomarem banho de sol. O Corpo-A-Corpo foi apresentado algumas vezes aqui, Luzilândia, Parnaíba e Picos. Trata-se de uma tentativa de colocar o leitor mais perto da poesia. Apesar de ter plena consciência de que a expressividade do poema não pode confundir-se, nem concorrer com a expressão do teatro, pois são diferentes, colei esse espectáculo ao lançamento da 1ª edição do A Profissão... e obtive resultados impressionantes, em relação à divulgação da poesia e do livro. Como se sabe, toda poesia guarda áreas de silêncio. A encenação dos meus poemas tenta preencher algumas dessas áreas de silêncio, pois existem outras para serem preenchidas pelo leitor disposto a fazê-lo.

LVF 6- Como foi tua passagem pela UFPI, naquele tempo de dias obscuros? Viver a época da ditadura te trouxe problemas?

Rubervam Du Nascimento: entrei para o curso de Direito da UFPI com uma experiência considerável de luta estudantil, adquirida enquanto estudante secundarista. Cheguei a ser eleito em congresso de estudantes para dirigir o Centro Colegial dos Estudantes Piauienses, o CCEP, na década de 1970, época de plena dominação militar, censura, perseguição, tortura física, mental e o que mais de terrível aconteceu naquela época de chumbo aos indivíduos que insistiam em atrapalhar com suas ideias e/ou acções a ordem unida das coisas. Tudo o que se fazia, incluindo a poesia, era uma afronta ao governo que tomou a ferro e fogo as rédeas desse cavalo aparentemente dócil chamado Brasil. Passei no vestibular para direito sem saber que existiam dedos duros nas salas de aulas que sequer se submeteram a concurso algum. Entraram na UFPI pelo teto, ou sob o peso dos coturnos, na cota dos órgãos de repressão, para acompanharem os passos de quem na universidade, questionava o milagre brasileiro do “para frente Brasil” ou do “ame-o o deixe-o”, que até hoje tem seus reflexos negativos nos destinos deste país. Não entrarei em detalhes sobre as vezes que fui forçado a dar explicações sobre alguma declaração a jornal, rádio, a um xerife de plantão na província, na casa onde hoje funciona uma pousada, na Arlindo Nogueira. Lembro que certa vez fui obrigado a explicar ao cara o que eu queria dizer em um poema publicado no jornal do CCEP que trazia em um dos versos o nome Petrônio. Só que não se tratava do Petrônio Portela, tratava-se do outro, do filósofo. Foi difícil explicar. Aliás, não deu para convencê-lo. Ele me olhava, riscava um papel e insistia que o Petrônio, era o Portela. Ao final carimbou o poema no jornal e devolveu-me com alguma coisa rabiscada, que até hoje não sei decifrar direito, rabiscou com a intenção de confundir-me, acredito. Nunca descobri o que escreveu. Acho que tinha alguma coisa com censurado. Guardo comigo este e outros poemas meus carimbados pelos censores da PF. Mas nunca fui torturado fisicamente. O que me salvou, penso, foi nunca ter assumido papel de protagonista político partidário. Sempre votei na chamada esquerda, desconfio que a direita continua a existir e tem ganho força ultimamente, mas nunca assinei ficha de partido político algum. Havia umas chapas eleitorais na UFPI constituídas por petistas, outras ligadas ao partido Comunista do Brasil, das quais sempre me neguei a participar, por entender que seguiam cegamente pautas de actividades partidárias que não contemplavam qualquer discussão artística e cultural. Minha luta, tanto como secundarista, quanto universitária era pela arte e pela cultura que os partidos políticos nunca deram o verdadeiro valor que merecem. O que eles querem dos artistas é ajuda para armar e desarmar o circo. Usam os artistas para complementarem seus risos de deboches, para brincadeiras de mau gosto, para molecagem. Todo partido político tem uma dificuldade enorme em conviver com tudo que simboliza ou expressa arte e cultura. Não é a toa que os poetas foram expulsos da República, desde Platão. Foram expulsos em razão da arte e da cultura serem rebeldes por natureza, não aceitarem a mesmice, o jogo cínico e desigual do poder. Os defensores da sociedade ideal, planificada, racional, não aceitam o jeito torto dos poetas. Pior, todo partido que atinge o poder vira refém do conservadorismo secular das elites políticas que odeiam cultura. Não tem jeito. Antes de deixar o CCEP criei uma imensa biblioteca com mais de cinco mil livros que hoje não sei onde foram parar, vez que a sede da entidade, na rua 24 de Janeiro, onde funcionava a biblioteca, está completamente abandonada. Nos quatro anos e meio que estudei na UFPI participei de passeatas, puxei algumas discussões em favor da cultura na construção de algumas chapas que concorriam aos directórios sectoriais e central, fui presidente de comissão eleitoral, participei da greve de fome, ajudei a reconstruir a UNE, mas foi só.

DG 7- Comente um pouco sobre seu processo de criação e nos diga o que une e o que distancia a poética dos seus três livros (Profissão dos Peixes, Marco Lusbel Desce ao Inferno e Os Cavalos de Dom Rufato)?

Rubervam Du Nascimento: em artigo publicado recentemente na imprensa local, o poeta Salgado Maranhão que eu respeito, tanto como poeta, quanto como ser humano, após a leitura de Os cavalos de dom Ruffato, aponta-me como um migrante da tagarelice espontânea da chamada Poesia Marginal, para o discurso motivado da linguagem. E acrescenta em seu artigo que “poucos perceberam esse rito de passagem que trouxe vigor e amadurecimento ao verso praticado actualmente”. Inclui o livro Os cavalos de Dom Ruffato como um exemplo que bem diferencia os desabafos sentimentais da arte poética na sua duríssima carpintaria. Entendo que esse comentário do Salgado responde a pergunta e dá pistas sobre o que aconteceu com a minha poesia desde os indicadores de renovação presentes na 1ª edição do meu projecto de “vida palavra” que denominei de A Profissão dos Peixes, editado em 1987, com 2ª edição em 2003, no título e nas janelas do livro Marco Lusbel desce ao inferno, nos desafios postos no Os cavalos de Dom Ruffato, até chegar à densidade estética e substância de linguagem que consegui atingir na 3ª edição, revista e diminuída, do A Profissão...que será editada, ainda este ano, por uma editora de São Paulo, tudo indica a Geração Editorial.

DG 8- Quais seus dispositivos de criação?

Rubervam Du Nascimento: para permanecer poeta, procuro manter no dia a dia uma faca amolada na pedra do meu cais, com uma enorme ponta de fogo, guardada em minha pele, manejada por mim toda vez que me aproximo de algo que me provoca, me assusta, me excita. É com essa faca de luz que corto e recorto o poema, antes e depois de ser colocado no papel, ou na tela do computador. Diferentemente de Shakespeare, poeta inglês, por exemplo, que referencia a maioria de seus poemas em estrelas em órbitas, gosto mais de utilizar a terra, o chão, as águas e o asco podre, azedo ou doce dos indivíduos, em meus poemas. Já disse várias vezes que poesia não é dom. Poesia é bagagem, é esforço contínuo, é compromisso estético que precisa de renovação contínua, para evitar o que eu chamo de “igolatria poética”: comprometimento precário dos poetas apenas esforçados que não vai além do umbigo, que acaba gerando poesia em série como se fosse a coisa mais fácil equilibrar um poema no papel, mas que acham que são bons poetas, entendem que para fazer poesia é necessário apenas inspiração, uma briguinha com alguém que ama, ou odeia, se comportam como os escolhidos por Deus, jamais pelo Diabo, para levar a sua mensagem pelo deserto.

DG 9- Qual sua relação com a literatura do hemisfério sul, existe algum diálogo com o neo-barroco?

Rubervam Du Nascimento: posso dizer que no Piauí, me sinto só na tarefa de dialogar com os poetas sul-americanos. Tenho aproveitado o máximo esses diálogos para a construção da minha poética. Minha linhagem é barroca, venho de Gregório de Matos, Murilo Mendes, Uidobro, Vallejo, Octavio Paz, e outros que poucos aqui na terrinha já leram ou já ouviram, pelo menos, os seus nomes. Aprecio a poesia criativa e persigo a poética da inventividade. Acredito que só essa poesia marca uma época e consegue continuar viva através dos tempos.

DG 10- Como você compreende a relação da poesia com a política? Ou melhor, você acha que a literatura tem uma função política? Comente um pouco sobre isso.

Rubervam Du Nascimento: a única causa que a poesia defende é a sua própria causa. A função da poesia nunca foi e jamais será política, sempre foi e será poética. Falo da política como sempre se praticou no país e no mundo por partidos a reboque de pessoas disfarçadas de bons cidadãos, a rigor, da pior espécie, que se apresentam como agentes responsáveis pela solução de nossos problemas, mas que na prática defendem seus próprios interesses e dos que lhes servem. A definição mais objectiva dessa política está no dicionário. Diz lá que política é a prática ou profissão de conduzir negócios políticos. Podem grifar a palavra: negócios. A Profissão dos Peixes, confesso, não tem nada a ver com isso. A poesia somente se segura como objecto de prazer estético. Desse modo, a poesia mexe e remexe todo o sistema límbico do indivíduo. Não suporta o que não é sangue, o que não pula, nem pulsa. Ameaça o domínio da emoção domada, que nunca explode, escondida em baú de ossos, fechado a sete chaves. A emoção que termina criando a morbidez romântica, o atavismo das paixões embrulhadas em tecidos apodrecidos, despedaçados e que teimamos em remendar. A poesia transita muito bem entre o desequilíbrio e o medo de cair. Sabe conduzir-se pelo fio tênue estendido em cada janela dos nossos dias. Experiência em escadas inseguras por um fio à beira do abismo. Chega e se apossa de tudo que pensamos que é assim, desse jeito e vira tudo pelo avesso. O grande lance da poesia é que ela não existe com o fim de mudar alguma coisa. É um brinquedo perigoso por que intriga o entendimento das coisas. Dar outro nome às coisas que a gente acredita já ter nome. Reforça a cor das coisas que a gente descobre esquecida num canto empoeirado de nossa casa. Pergunto: a beleza existe para mudar o quê? A beleza existe por ser beleza o bastante para ser chamada de beleza. Existe para exaltar o que é belo na palavra beleza e pronto.

DG 11- Na sua percepção, que lugar a poesia tem ocupado no mundo contemporâneo?

Rubervam Du Nascimento: é visível a falta de espaço para a poesia na sociedade do espectáculo ridículo mediático, da mesmice diária, da brincadeira maliciosa, sem qualquer porção lúdica, dos meios de comunicação, todos eles, preocupados apenas em usar os artistas para a justificativa dos anúncios comerciais de produtos que vendem, descaradamente, dentro ou entre um capítulo e outro das novelas e programas de auditório. O que esperar, poetas, de uma sociedade que perdeu o encanto e o direito à rebeldia e vive constantemente sob a ameaça da violência e da tolice repetida até à exaustão? O que fazer numa sociedade em que, diante disso, a chamada intelectualidade de farda e pijama se compromete cada dia mais com a imortalidade dos defuntos e acredita que assim, com seus pontos de vistas mofentos, está contribuindo para alterar o belo quadro da idiotice social?

LVF 12- Você é também um observador e um incentivador da “cena nova” (teu prefácio sobre o meu “Versificando” – ainda na gaveta – ficou melhor que o livro), como é que você vê esse novo cenário da literatura aqui na “terrinha”?

Rubervam Du Nascimento: vejo pouca articulação conjunta. Como não acredito que não se subtrai poesia do nada, penso que não se faz arte sozinho. Fico satisfeito em saber que vocês existem. Desconheço outro colectivo funcionando hoje como o de vocês nesta distanteresina. A poesia precisa ser lida, discutida, remendada. A palavra do outro às vezes salva um poema, ajuda a retirar uma palavra que está ferindo de morte um poema porque foi mal colocada no verso e que o poeta, por uma razão ou outra, sozinho não descobre. Procuro, na medida do possível, acompanhar o que é editado a nível de poesia, por aqui e pelo país. Sempre que viajo à serviço da repartição onde trabalho ou para participar de algum festival literário, passo horas em livrarias e sebos procurando novidades. Confesso que entre um grande número de bobagens, de repente aparece um livro que merece releituras. O Raniere Ribas, vocês o conhecem? Ele é professor da UFPI, tem uma poesia que incomoda, uma poesia consistente. Ele editou há cinco anos, mais ou menos, um livro de título e conteúdo intrigante, Os Cactus de Lakatus e ninguém teve a coragem de escrever alguma coisa sobre o livro. Silenciaram diante da ousadia e da agressividade estética e de linguagem de um poeta que merece ser lido e discutido. Gosto da poesia do Wanderson Lima, do Adriano Lobão, da Carmen Gonzalez. Poetas um tanto jovens, mas com uma poesia que em nada perde para a poesia que se publica por grandes editoras no eixo Rio-São Paulo. Tem um poeta que publicou apenas um livro e é da minha geração, mas que nunca mais ouvi falar em seu nome, o Francisco Sales. Ele editou o livro: Esboços ( paredes de papéis finíssimos) em 1995 e de lá para cá não editou mais. É um bom poeta. Outro dia deparei-me aqui com um livro excelente chamado: Terreiros, de uma poeta que não conheço pessoalmente de nome Keula Araújo e me assustei com os poemas que escreve. Poemas densos, bem construídos. Leio sempre a poesia do Demetrios. Uma poesia urbana, visceral, visionária. O Valadares eu conheço de algum tempo e tem bons poemas. Vocês não sabiam, mas acompanhei de perto o que era editado na Trimeira. Comprava nas bancas de revistas e jornais. Cadê o pessoal que fazia a Trimeira? A Trimeira acabou? Vocêsa anunciaram no terceiro número o fim da revista, não foi? Lembro versos como: mas as vestes que te diziam alguma coisa/ não existem mais, da Lorena Albuquerque, alguma coisa da Renata Flávia, da Lee Flores, do Rodrigo Leite e da Arianne Pirajá que escreve versos inteligentes, de imagens fortes, como: flores constipadas, final do poema: vida bandida, recentemente anexado no blog da academia onírica e da Laís Romero que escreve poemas com achados impressionantes. Parece-me a mais exigente, a mais preocupada em encontrar uma poética particular.

DG 13- Você já cometeu algum pecado cultural?

Rubervam Du Nascimento: pecado cultural? Deixa-me ver. Acho que sim. Mas vou contar um caso que por pouco não me levou a cometer o que seria o maior pecado cultural da minha vida. Um pecado que, caso tivesse se concretizado, não teria como ser perdoado. Seria um baita pecado que, certamente, nenhum rosário de orações expiaria a culpa. Trata-se de um rascunho de livro que trouxe de Coroatá do Maranhão pensava eu, no ponto de ser editado. Queria o livro editado logo que cheguei aqui, em Fevereiro de 1972. Escutem o título: rastros de estros. Que diabo é rastro de estro? Me respondam. Um livro horrível, repletos de pensamentos moralistas, cheio de sonetos precários e alguns poemas soltos. Sonetos parecidos com os do J. G. de Araújo Jorge. Já leram? Não precisam ler. O J. G. está morto e com ele foi a poesia que editou em vida. Rastros de Estros era uma mistura de J. G com o Neimar de Barros, o cara do livro: O Deus Negro, que mais parece um livro de auto-ajuda do que de poesia. Foi bastante lido na década de 1960 e 1970. Ele vendeu uma porrada de livros, mas também já morreu e levou com ele a poesia que publicou. Foi toda devorada pelos vermes que se alimentaram de sua carne, dos seus ossos e das folhas adoecidas e inúteis que escreveu.


publicado por Revista Literatas às 06:39 | link | comentar
Segunda-feira, 16.05.11

“O Regresso do morto”


Policarpo Mapengo – Opaís

A morte está presente na sua obra, não só quando o “morto regressa” no seu livro de estreia, onde até “Ngilina” – no conto “Ngilina Tu Vai Morrer” – encontra nela a fuga do sofrimento. Depois de “Amor de Baobá”, Suleiman Cassamo voltaria a rir-se da morte em “Palestra Para Um Morto”. Mesmo nessas “profundezas” conseguimos com este escritor olhar para um país que se reinventa nos livros.
 
Os mortos, quando regressam, dizem, trazem a cruz pesada da sua própria tumba dobrando-lhes a coluna. Porém, nunca ninguém os viu de regresso. Mas eis que este retorna, com uma pesada mala de chapa no lugar da cruz. Vem arrastando um par de botas sólidas, a poeira desenhando continentes nas gangas suadas, o olhar sem chama debaixo do capacete.
Fazíamos um mergulho profundo em “O Regresso do Morto”, o livro de estreia de Suleiman Cassamo, como se a querer acreditar que os mortos regressam mesmo que ninguém os tenha visto regressar. A crónica da morte podia até saltar do livro para a “vida real” de um país que precisava desesperadamente regressar à paz. Foi o que disse Cassamo quando, finalmente, nos encontrámos para uma entrevista que já vinha adiando havia dias. O livro foi escrito num período de crise. Quando as ruas, mesmos as que vinham da África do Sul, de onde regressava o “seu morto”, cheiravam à pólvora e à sangue. Podia ter sido essa a realidade que condicionou o livro. Se é que os mortos se cansam, devia estar muito cansado. Não era só aquele morto que estava cansado, era um país dilacerado que “precisava regressar à normalidade”, disse Cassamo na entrevista que deu ao “O País” e à “STV”.
A imagem que se cria quando se pensa em Suleiman Cassamo é de “O regresso do morto”. Estamos perante um escritor que se apresenta com uma construção dramática, se olharmos para a forma como regressa o “morto” do seu livro?
Gostaria de me colocar de fora, como quem pára de longe e olha para a palhota que acaba de construir. Ficar de fora e olhar para o livro como um simples leitor. Apesar da carga do título, a ideia de “o Regresso do Morto”, mais do que drama, é a outra forma de utopia, ao acalentar a esperança de ter de novo no nosso convívio os entes queridos que um dia nos deixaram. É também a exaltação do imaginário colectivo. No Sul de Moçambique, ao longo de quase um século, muitos homens foram com o trabalho migratório para a África do Sul. Muitos perderam a vida em acidentes nas minas, mas na terra de origem as pessoas sempre guardaram a vã esperança de vê-los regressar. Em termos de construção literária, há uma tensão muito grande, criada na base de recursos muito escassos, na das forças latentes da terra, uma prosa com muito sabor à terra. Como disse um dia um confrade, “O Regresso do Morto é o povo pela própria boca”. Passa pelo livro um hino à mulher, o livro canta a luta da mulher enquanto esteio da família, num contexto em que homens estão ou em passagem ou em movimento. O imaginário retratado no livro não é exclusivo a Moçambique, é, além de universal, eterno. Creio que são estas as razões que estão na base da empatia com a obra no país e também fora, com algumas traduções pelo meio, que fizeram a UNESCO nomeá-la como representativa do património literário universal”.

Mesmo assim, num momento de drama, não só do seu livro quando aparece, mas também do país, consegue trazer, com alguns detalhes, a descontracção e algum humor. Era preciso dar uma pitada de humor no tempo de crise?
De certa forma, sim. “O Regresso do Morto” é um povo que nunca perdeu a fé, um país que renasce das cinzas. É um apelo à memória, que triunfa sobre a destruição da guerra. É um novo ciclo, de um país que se reinventa.
Apesar de ter surgido com “Amor de Baobá”, parece haver uma tendência de se identificar Suleiman Cassamo com a morte. E, o seu outro livro, “Palestra para um Morto” parece vir confirmar essa criação imaginária social. Como é que olha para a morte?
A morte é um tema que ocupa, nas nossas cabeças, volume, massa e peso. Apesar de ser uma constante da vida, quanto menos se falar dela melhor. Mas num texto como “Palestra para Um Morto”, a morte é tratada com ironia, com arrogância, se quisermos. É um texto que diz: ”Morte, tu não és nada. És apenas o outro lado de uma fronteira escorregadia”. Aliás, a morte é até uma condição suprema, aquela em que os humanos estão livres de todas as mazelas, despojados de qualquer dor. A situação em que já pagamos todas as nossas dívidas. Por outro lado, aos mortos sobrevivem as paixões mais intensas, o amor incurável, o ódio implacável. E tem-se então todo o tempo do infinito para perseguir com afinco e cálculo as paixões que eram da vida. Os mortos não desarmam.
Nelson Saúte, em “os Habitantes da Memória”, pergunta a quase todos os seus entrevistados se o tempo da crise era fértil para a produção artística. Como podemos olhar para a nossa literatura no tempo de crise, refiro-me ao tempo de guerra e à produção que temos agora?
A literatura moçambicana nunca parou no seu processo de auto-construção. Aquele foi, sim, um tempo fértil. Apesar de privações de muita coisa, foi também o tempo que testemunhou o nascimento de uma nova vaga de escritores.   
Também temos nesse período um momento de ebulição, não sabemos se podemos caracterizá-lo como de revolução, mas foi o momento em que os espaços literários eram centros de debates. A tendência de evolução do país veio “matar” essa revolução literária?
Foi um ciclo que se cumpriu. A entrada do país para a economia de mercado, por exemplo, trouxe outro tipo de preocupações, outra forma de estar. Antes, era o fervor das tertúlias, o entusiasmo das brigadas literárias, o Msaho no Tunduru, mas também os saraus de poesia em muitos dos espaços que foram tomados, depois, pelas igrejas. A inauguração recente de casas de fé, feitas de raiz, é por isso de louvar, quando olhamos para a forma de como certas igrejas entraram no país. Os espaços literários, para além de centros de debate, são essenciais como espaços de experimentação para os mais jovens. É neles que surgem talentos, o reconhecimento pela selva literária.
Na questão anterior referíamo-nos a toda a conflitualidade que surgiu e que daria origem à geração Charrua. Temos hoje condições para essa construção ou surgem outras exigências que fazem com que o movimento literário siga um curso tranquilo e sem o debate que sempre moveu o mundo cultural?
O debate é salutar e creio que acontece ainda, mas com novos processos, talvez pouco perceptíveis. Mas o importante é a produção, que continua. Tanto por parte dos mais velhos, como dos mais novos. Os ciclos literários são longos. Só daqui a algum tempo podemos ver a qualidade do que se colheu. A crítica literária será sempre importante.

A nossa literatura foi construída com base na poesia, com enfoque para os nacionalistas e mais tarde os de poemas de combate. Mas também surge Suleiman e Ungulani com a ficção. Era, para vocês – e os outros, nos lembramos também de Mia Couto e, mais tarde, Paulina Chiziane – uma corrida em contra-corrente?

Não propriamente em contra-corrente. Essa emergência da prosa fez-se à sombra do trabalho daquela geração de poetas. Essa geração tinha o grito da revolta na ponta da caneta. A nossa geração, no lugar de contrariar, completou a anterior. O Ungulani, o Mia, o Marcelo, a Paulina, o Aldino Muianga, a própria Lília Momplé, e tantos outros, são de uma vaga de escritores que viveu com fervor uma época de pico, que se seguiu à independência do país. Uma geração que assistiu ao chamado “boom” da literatura angolana, a partir dos finais dos anos setenta. Um “boom” ao qual correspondeu, sem rivalidade, mas com os seu meios. Uma geração com preocupações estéticas muito altas, que encontrou na prosa com a força da sua expressão. Mais salutar ainda é que foi uma geração que teve a preocupação de ler. Alguns leram com entusiasmo os mestres do realismo mágico latino-americano. 

Concorda com alguns – aqui se destaca Aníbal Aleluia – que a prosa moçambicana chegou com a Charrua? Ou melhor, como é que se pode avaliar a geração Charrua na construção literária nacional?

A Charrua é um pouco fruto do que dissemos. Um momento não propriamente de ruptura, mas de grande conjuntura literária. Mas a prosa moçambicana já vinha de trás. Entre outros, com Luís Bernardo Honwana. “Nós Matámos o Cão Tinhoso” é um marco importante. Mas também houve outros, como Orlando Mendes, Albino Magaia e o próprio José Craveirinha, que, para além de poeta, era também bom prosador. A geração Charrua teve o seu papel, mas ela não é o início e não será, certamente, o fim do percurso.

 Voltamos novamente à questão da construção. Como é que se constrói “Charrua”? 

O grupo Charrua nasceu do fervor da época, da busca interior e de reinvenção do país literário. Um grupo de jovens juntava-se na AEMO em infindáveis tertúlias. Alguns dos mais velhos, como Rui Nogar, também “cumpliciaram” no processo. O que é notável é que, embora o grupo tenha servido de sugestão, foram díspares as vozes que saíram da “Charrua”. 
Podemos falar de demissão, sobretudo depois desse momento em que também chegou a ser secretário-geral da AEMO? parece-me que toda a geração seguiu outros caminhos e renunciou ao debate ou à intervenção cívica e social.
Essa geração, depois do período em que Pedro Chissano, Hélder Muteia e eu passámos pelo lugar de secretário-geral da AEMO, nunca abdicou, mas soube criar espaço para os mais novos.
É verdade que tivemos um tempo de grande intervenção. Por exemplo, com espaços de colaboração na imprensa. Muita dessa colaboração fechou, mas a intervenção social desse grupo continua sob outras formas.
publicado por Revista Literatas às 04:56 | link | comentar

A Revista Literatas

é um projeto:

 

Associação Movimento Literário Kuphaluxa

 

Dizer, fazer e sentir 

a Literatura

Julho 2012

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

pesquisar neste blog

 

posts recentes

subscrever feeds

últ. comentários

Posts mais comentados

tags

favoritos

arquivo

blogs SAPO