Ana Mafalda Leite

Ana Mafalda Leite

Ana Mafalda Leite é poetisa luso-moçambicana e investigadora científica na área das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Ana Mafalda Leite nasceu em Portugal, mas viajou para Moçambique ainda muito nova, onde frequentou a Universidade Eduardo Mondlane,em Maputo. Depoisde uma estadia prolongada em Moçambique, regressou a Portugal, onde passou a exercer funções de docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Enquanto poetisa, publicouEm Sombra Acesa(1984), Canções de Alba (1989), Mariscando Luas ( 1992, em colaboração com Roberto Chichorro e Luís Carlos Patraquim), Rosas da China (1999), Passaporte do Coração (2002) e Livro das Encantações (2005).

A obra de investigação científica distingue os seguintes ensaios :

. “A Ilha de Próspero de Rui Knofli ou a Ilha de Caliban na poesia moçambicana - notas em torno de um mito de origem cultural”, in Camões, nº 6, Lisboa - Instituo Camões, 2000;

. “Lusofonias - Quando o Ibo se revê em Lisboa”, in JL, 2000;

. “Lusofonias - As Novas Aventuras de Sandokan ou de Serpa Pinto?”, in JL, 2000;

. “Lusofonias - As Parábolas de Mia Couto”, in JL, 2000;

. “O Último voo do Flamingo”, in Metamorfoses, nº 1 - Lisboa - ed. Cosmos, 2000;

. “Reflexões em torno dos conceitos de Regionalismo, Nacionalismo e Universalismo na Literatura Moçambicana”, in Ata Colóquio sobre Literatura Moçambicana, Maputo, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 2000;

. “A Fraternidade das Palavras”, in Atas da Festa da Língua, Sintra, CM S, 2001;

Prefaciou também a “Obra Completa de Corsino Fortes”, publicada in A Cabeça Calva de Deus, Lisboa, D.Quixote, 2001.

É também autora de vários ensaios, traduções, artigos e introduções e recensões críticas.

Enquanto investigadora e estudiosa das literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Ana Mafalda Leite dá um forte contributo, ao lado de outros nomes importantes como Pires Laranjeiro, José Carlos Venâncio, Manuel Ferreira, Salvato Trigo e outros, quer para a descodificação dos textos dos escritores dos países lusófonos quer para a divulgação de uma literatura que, tendo como suporte a Língua Portuguesa, lhe imprime a sua própria expressão.

Asua experiência e domínio do conhecimento nesta área fazem dela uma presença indispensável em colóquios, conferências e outras iniciativas na área, como participante e como moderadora.

Em fevereiro de 2002, foi convidada, a par de outros escritores, para as jornadas literárias “Correntes de Escrita “, realizadas na Póvoa de Varzim.

 

 

 

O Vermelho das acácias na paisagem

 

cai ao chão a mais íntima aurora

há-de vestir-me de cor rubra

a matéria que tinge o céu e me deslumbra

este assalto da aurora será meu enxoval meu dote de menina

agora que sei o mistério e continuo donzela

tu que pões o vermelho das acácias na paisagem

estranho amor te foi cobrindo amarga toranja

doce de papaia regressa

de cada vez

mais jovem

a semente

chama

arde em lábios audaciosos

neste acontecer saboroso

eles são afeitos

à incandescente terra a crescer um dom de mansidão

em fundo laranja canta o palato assim aceso enquanto

um rosário de contas pretas me escorre dos dedos

devagarinho para o chã

 

 

Naturalidade

 

(UMAMA CARTACARTA CARTACARTA A RUI KNOPFLI)

 

Eu, meu caro Rui Knopfli, eu caso-me à agrura das micaias e das rosas, ao roxo das noites lentas e às luas do dois hemisférios. Do sul ao norte em espiral me move o coração em índico interior, a intensa lentidão dos sentidos adormecidos por essas aves estranhas que me povoam os sentidos de asas bem reais.

chamem-me europeia ou africana, que fazer senão calar? Meus versos livres, livres xingombelas, livres pomos, voam sem chão, neste chão que trago por dentro da casa móvel que atravessa o sonho. Muito por dentro de todas as paisagens acorda aí esse teu, este meu, quebranto dolente, luz que as tardes em brasa levantam na alma acordada em seu abrupto amanhecer. É provável e é certo ser este meu corpo entrançado de liana e liamba uma trepadeira de nuvens em que o arco íris morde a cauda de muitos céus em desvario, porque a alma sem sossego acasala seres bifrontes, monstros de um hermes apátrida.

Que pátria a de um poeta senão uma língua bífida e em fogo, senão um veneno redentor de mamba, enroscada dor nesse corpo babel em chama anunciado?

Há no entanto uma terra e uma pátria em que pouso devagar, me reconheço e desconheço, escriba acocorado enrubescendo a língua de amorosos sabores, de vibrados ritmos, é a tua pátria de versos ó Rui, a tua mafalala entumescida José, a tua sensual arquitectura a oriente, Eduardo, ó príncipe dos poetas, o teu rumo silencioso e manso Artur, a escultura maconde da tua voz magoada Noémia, teu rendilhar de pemba azul Glória, a monção elegíaca e trágica, dolorosa dos teus blues, Patraquim, teu mar ao norte em ilhas utópicas Virgílio, e em arca de noé, essa fábula grotesca de Grabato arrebatando os pontos cardeais num chão desgarrado a Filimones, mes em nós crescido até à palma primeira de todos os sons.

Acredita, a terra-mar que em nossas línguas caminha é naturalidade obscena, pátria dividia em crónicas da peste, nascimento incestuoso de múltiplas mães, em nós úbere o som da xipalapala.

lancinado eco do fim das tardes, misterioso som, morro de muchém crescido da terra, desventrando asas em voluta, lento voo em sombra acesa, pátria minha, passaporte,

naturalidade, só uma, a poesia Maputo

 

publicado por Revista Literatas às 11:13 | link | comentar