Canção Terceira
António Névada - Cabo Verde
A Bia Didial
(canto à semeadura)
I
Não venho para redimir ou semear,
não viemos para colher ou situar.
Oluar fragmenta-se,
os momentos tecem o peso
e não viemos para escolher, corroer ou perpetuar,
e nem as coisas preservam
o caudal dos tempos,
ou inutilmente pensamos, estimamos o afluente da dor.
Não venho para criar ou garantir,
não viemos para aumentar ou instaurar. Cada enxugo ou rega,
cada filho dizendo,
dizendo a morte e a sina nossa,
a cada filho o condão da rememoração.
E se dizemos hoje dizendo cantos,
é porque dizendo hoje temperamos o espírito!
Ontem
descemos as encostas
e bebemos a água da fonte,
a semeadura foi abençoada pelo poente,
pela poesia e pelo bater do tambor,
e bendizemos o corpo vago,
as fraquezas,
alguns troços de alma.
Hoje
sentamos à soleira da porta
e dizemos hoje dizendo cantos,
porque dizendo hoje diremos o vento
à porta da aldeia,
cantamos a terra ou o verso e rima.
Diremos a morte, a sensação de inexistência
[que nos perturba.
E o homem
cultiva sobre a terra estéril,
e sobre ela ajoelha-se
para louvar ou barafustar,
para louvar ou possuir
o dom dos deuses.
Homem que espera a consumação
e o volume da vida,
homem que habita os seios da madrugada
ou os cios, cios nossos
e do tempo horto.
Será que vivemos,
sobrevivemos,
para estabelecer a causalidade da morte?
Ou o mundo é a rua toda,
o regadio e a impunidade?
A rua toda, almas famintas,
o afluente da dor?
Nas palmeiras,
no oráculo e em voz branda,
assumimos o cântico, dispensamos o corpo,
e alagamos a ubiquidade.
As ondas banham a alvorada,
a areia reagrupa a linguagem,
e a terra semeia o ramo e o suco.
A alma vai com o vento,
o infindável manto oculta as imagens,
e as árvores da humanidade
caminham sem frutos
sem raízes de imbondeiro.
Cantos, breves cantos
ó demência toda!
Seguimos
as pisadas nocturnas da brisa,
e a maré rasa
no rosto da maresia,
e a secura do sal pela rua.
Na enseada onde os homens fazem as preces
o bravo retorna ao mar.
Ao longo da estrada, lado a lado,
o penhor e o prumo da semeadura
descrevem o campo, a alfarrobeira,
o grão da mostarda, essa aflição dolente.
II
Ocaminho é longo,
a estrada deserta.
Adensidade das palavras
não encontra
o discurso necessário.
Amagnanimidade vagueia
pela vida, convivendo
com as colinas agrestes do poente.
E certamente,
os sonhos serão acessíveis
na próxima alvorada, e as lágrimas
percorrerão as faces do cultivo:
a cana, a cevada e o milho,
encontrarão a terra ferida.
Os braços, as pisadas desoladas,
na paisagem entreaberta,
encontrando o corpo doente.
Oh!
Escolhemos a quietude, encolhemos a audácia.
E o caminhar aviva o desejo de audiência,
de intermitência, inconsciente do seu dom
que é dono da fugacidade.
- Rochas densas, elegias completas,
como vos direi
que o poema não é a almenara do silêncio
nem a obra o seu mundo?
Como vos direi,
ó eloquência arrebatadora,
que o verso que lhe falta
a serenidade toda
apascentará no seu leito?
E a terra, a natureza sua,
que nos vê nascer e crescer,
espera pacientemente a nossa morte
para reedificar a substância telúrica
[que lhe pertence.
Pelos vales, pela ribeira,
o vento incansável,
o regadio, a água do poço.
Os homens cavam,
cavam e cantam
embebidos no sexo e na sede.
Nem horas nem palavras,
Inalteráveis cantos.
E pergunto,
que entranhas nos suportam,
que entranhas matamos com os dias?
Será que cavamos a própria sepultura?
Inventamos os sonhos, vivemo-los
com essa ânsia inexplicável, verosímil.
Observamos o quotidiano,
essa encadernação lenta, precisa.
Ah!
canto inválido,
vozes mutiladas
gemendo no redizer do vento:
a alma abarca a existência.
Os olhos mergulham na nostalgia dos dias
e um Deus inútil envolve o rebanho,
o estanho e a profunda tristeza
pelos movimentos da vida.
Encontra o homem, rebelde,
arrastando o mar pela praia adentro:
Boca ávida,
desespero trágico
seus membros lânguidos,
sobre a terra grávida
caem os homens moribundos.
E o sol brilhando
acompanha a sementeira,
o corpo e seiva,
porque a loucura
perdura no âmago dos seres,
troncos da mente folha gente sem semente.
Ó deuses, ó cantos, ó bravos.
Ó imensidade negando a têmpera dos dias!
III
As vozes são agora perecíveis,
o abandono alenta a paisagem,
sua sombra queda-se
na monotonia do horizonte,
seus dedos contornam
o renascer das cores.
As folhas cobrem os detritos da vida,
a areia possui os corpos,
versos amorfos declamam a mudez do tempo.
Qual é o ente que colhe a alma triste?
Qual é a água que cala o abrasado cutelo1
[da minha póvoa?
Apascentamos o destino,
sina diminuta ou prenhez que nos arrebata,
tal a fecundidade, incontestável culto
onde os pássaros poisam e semeamos a afronta.
Seguimos rotos, famintos pelos campos da mente,
e palmas e membros hasteados
suplicam ao deus afónico?
- apuramos mais uma vez a grandiloquência!
E exibimos pelas ruas as mágoas,
o nosso húmus, o que nos resta,
ou simplesmente mais um dia,
a lida e a aresta do dia,
a vida.
Dúbios versos
que fluem no vazio da pena,
verbo que verga sob o vento,
membros densos e sobretudo abraços,
braços da mesma quietude
e ventania brusca buscando as lágrimas,
ou mãos que empunham a magnitude.
Lombos doridos, prantos nocturnos,
sustentam a geometria das sombras.
E caídas, sob o ripostar das ondas,
nossas almas seguem vazias
por entre os cascos dos navios.
Ó homem brando de sonhos magos,
homem lânguido que vagueia pelos tempos
sua mente sumarenta:
qual vento louco,
o mar bate rouco, longo
dentro do peito, sua
vertente de tambor. O
mar bate tanto
Que no mastro outro mastro,
na vela outra vela
procura o porto de permeio
onde o peito dorme.
Não construímos templos,
não louvamos o inexprimível.
E a seu tempo,
assemelhando-se à ribeira,
encontraremos o mar,
afagaremos as chagas, o ardor.
E direi mesmo:
- julgaremos o homem, sua essência,
como quem julga a negação dos deuses,
o infinito ou a irreferência das coisas!