“O outro pé da sereia”


Jorge de Oliveira – O País

"...é a beleza da literatura pela pena de quem escreve doce, acertado, inventado, coerente e fácil"

1. O mais lido dos escritores moçambicanos, seguindo a linha que lhe é peculiar, trouxe a público mais um romance, desta feita carregado de muita história de Moçambique, diria, mais ligado a épocas remotas, contornando a guerra dos 16 anos que costuma ser a sua linha. Este outro pé, é um belo romance de amor, de um amor que não interessa se é lindo ou não, proibido ou não, velho, novo, de perto ou de longe, é a beleza da literatura pela pena de quem escreve doce, acertado, inventado, coerente e fácil.

2. Expressões que alimentam a arte fazem a escrita deslizar e embalar a leitura, suportam o livro: “Temos que desenterrar essa estrela decadente”, “Eu durmo sozinho. Mais do que sozinho, eu durmo com a minha esposa”, “você está em fase de nua cheia”. “Sabe como eu me chamo nestes ultimamentes?”.

3. Temos que ter orgulho de ter um artista assim, que constrói a nossa nação desconstruindo-a, que, a dado passo de leitura, nos leva à parede e nos encosta, e nos aperta o pescoço com uma interrogação, como é possível escrever tão belo assim? É um dos nossos moçambicanos que escreve assim? É um dos nossos moçambicanos que domina a escrita deste modo? E repelimos a tentação de dizer ou acreditar que esse pode ser um cidadão do mundo, não, esse é de Moçambique, ninguém o pode reivindicar, é beirense, por isso faz uma leitura reaccionária, destrata as mesmices, abana as regras, as palavras, chama-nos ao texto como uma onda traiçoeira, arrasta um pescador para o fundo do mar.

4. “Os espíritos não vêm de nenhum lugar. São como a água: estão dentro de nós, “Nascemos e choramos. A nossa língua materna não é a palavra. O choro é o nosso primeiro idioma”, “Escreva na terra, filha. A terra é a página onde Deus lê”, “O goês dizia a verdade. Nos últimos meses ele e a esposa já não davam asas aos lençóis”, “sobre o balcão da estação de correios amanheceu um enigmático pedaço de papel”.

5. Quem pode dizer mais novidades sobre o que escreve um autor que escreve sempre novas coisas de forma diferente? É uma obra de ditados, máximas, frases não feitas, mas criadas em função da situação concreta da narrativa, o que é sempre um prazer de ler, até como válvula de escape aos clichés que nos assolam, pela esquerda e pela direita, sem resultados visíveis.

6. “A saudade é a única dor que me faz esquecer as outras dores”, “tenho saudade do moço, nunca dizia nada e, assim, tinha sempre razão”, “A estrada de areia é um rio seco: perdeu as margens e desagua no seu próprio leito”, “Você me desculpe, mano, mas o seu problema é que pensa tão devagar que as ideias só lhe chegam quando você está a dormir”.

7. A criatividade é tão sublime que, às vezes, pensamos, este tipo não tirou isto de algum sítio? Afinal, aprendendo pela sua própria narrativa, vê-se que tirou isso de todos e nenhuns sítios.

8. “Tinha presos aos lábios os detritos todos do planeta. Mas essa sujidade nocturna é que a ensinava: tudo, neste mundo, é humano. O rio tem ancas de mulher, a árvore tem dedos para acariciar o vento, o capim ondeia soprado por antigas vozes”.

9. A viagem pela história de Moçambique que o texto realiza confunde-se com uma viagem, pela magia das artes e letras, tão intensa, agradável, instrutiva, que o imaginário moçambicano fica mais rico; apesar de ele ir buscar a vivência na sua terra não é esta que enriquece a escrita dele, mas ele que faz de nós mais completos.
publicado por Revista Literatas às 08:29 | link | comentar