Excerto de Funan Mutin (Branca Flor)

Joana Ruas - Lisboa
E, como ela saísse para a rua , o cabo seguiu-a e perguntou: — Para onde vai, Fulan Mutin? 
—  Sou Maria Benedita,  filha de D.Carlos e estou lá para os lados da praia. A noite não tarda a cair e eu não quero viajar às escuras.
Maria Benedita chamou Olímpio e começaram a subir morro acima seguidos pelo cabo. Estavam já  naquela plataforma ondulada e sulcada de vales estreitos onde serpenteavam pequenos arroios alimentados pela  água suada pelos montes ensopados  e tendo em frente, velando como uma estátua de pedra, as escarpas do Mate-Bian e o céu tão perto das cabeças que parecia repousar placidamente sobre o Mundo Perdido, quando  o sino da Missão começou a tocar a finados. O rosto do cabo tornou-se grave.   
—  Eu acompanho-a até casa. O sino, quando toca antes de eu começar a jogar, dá-me azar. Mas espere aqui por mim que eu não dei resposta ao chinês.
E, tendo-se desculpado pela viagem perante o china,  Filomeno partiu com Maria Benedita.
Olímpio que com a espera se deixara adormecer debaixo de uma árvore, quando Maria Benedita lhe tocou no ombro para o acordar,  apesar de estremunhado, espantou-se de a  ver  com um desconhecido que depois de  pegar em Maria Benedita pela cintura,  a  colocou em cima do cavalo. E mais espantado ficou quando o desconhecido, sem cerimónia, tomou  o cavalo dele  para o montar. Já encolerizado com tanto atrevimento,  levantou-se de supetão e gritou: — E eu onde vou?  
Como nem ela nem ele cuidassem da sua pessoa, Olímpio achou melhor calar-se para ver se entendia melhor o que se estava a passar e foi andando a pé atrás deles que não pareciam apressados, pelo contrário, iam calados, mas Olímpio captou qualquer coisa no ar, impalpável mas demasiado presente para ser irreal. Era como se o mundo estivesse, de repente, todo sossegado. Pegou num galho para bater as ervas do caminho mas susteve o gesto. Podia-se quebrar o encanto e, mesmo só podendo vê-los de costas, sentia que apesar de montados em cavalos diferentes eles iam andando como se fossem uma só pessoa, uma só respiração, um só alento. Iam os dois tão paradamente andando que as borboletas poisavam nas crinas dos cavalos, nas orelhas e nas caudas. Quando em uníssono se olharam olhos nos olhos, os cavalos, sentindo-lhes a leveza,  ousaram baixar as cabeças e puseram-se a comer erva. Olímpio tossiu. Os cavalos começaram a trotar. E, como tivesse que correr atrás deles, gritou-lhes que parassem. Eles olharam para trás e começaram a rir.   
As nuvens corriam velozes  pelo céu fora. A saia azul do vestido de Maria Benedita enfunou-se como uma bandeira, o chapéu caiu-lhe para os ombros e as fitas da cintura levantaram-se para lhe bater no rosto. Pararam. Maria Benedita trocou  o vestido  pela lipa e prendeu o chapéu com um lenço que atou com um nó debaixo do queixo. Quando continuaram a viagem, o vento despenhava-se do céu descendo as montanhas num vozeirão tremendo, galgava colinas e prados e, ao passar junto às gargantas dos rochedos, atirava-se pelos desfiladeiros em assobios sibilinos. As montadas dispararam vale abaixo. Cavalos selvagens, soltando-se da manada, fustigados pelo vento que lhes desatava as crinas revoltas, acolhiam como uma riqueza inestimável o  vigoroso abraço da ventania, empinavam-se e relincham numa saudação estrepitosa, expondo as narinas ofegantes à picante  carícia do ar fresco. Os viandantes embrenharam-se na floresta onde a ventania sossegada rumorejava no cimo das árvores altíssimas até que saía da densa folhagem e, já cansada, se ia estender como uma brisa fresca sobre o mar. Desmontaram para descansarem. No meio da floresta , o vento entrava ali devagar como num templo. A atmosfera carregava-se do  perfume das flores e, no ar um pouco agitado, ainda as pétalas tombavam das árvores em miríades esmaltando a terra fofa. O vento trazia rumores vários, cicios e assobios e a frescura de uma primavera breve. Para as flores dióicas chegavam as núpcias: o seu pólen espalhava-se nos ares como o sorriso de um deus amarelo e,  no recesso das folhas, na benigna obscuridade que as cercava, as flores aceitavam com um frémito voluptuoso a carícia da brisa e, enlanguescendo, derramavam-se lançando no seio da doce brisa o pólen fecundante. Os ninhos castanhos ou cinzentos recebiam o benefício de uma leve pétala branca poisando no seu ovo azul. O botão da flor da lua, ao sentir a aproximação da noite, estremecia um pouco e entreabria-se para desabrochar, caprichosa, na noite alta. Tinham-se sentado em frente um do outro. Ele tirara a camisa para ela se sentar nela e Maria Benedita olhava o seu peito largo e forte de filho das montanhas. Ela enrolara nas mãos um lenço de seda bordado a violetas e ficara de olhos baixos, submissa e grave. O seu rosto perdera a jovialidade e os olhos, a vivacidade. Mesmo quando chorara ele vira por detrás das lágrimas a vivacidade tenaz, a determinação juvenil e quase caprichosa por um objectivo. Agora via-a de semblante grave e olhos que escondiam uma súplica. Ele desfez o nó que lhe atava as mãos postas e, tomando-as entre as suas, levou-as à testa.  
—  Eu começo a sofrer  antes mesmo da despedida. No corpo e na alma. Agora, quer partas ou quer fiques,  já não sou mais moça, sou mulher antes de ser noiva.
—  Eu estou aqui para responder ao teu sentimento. Vou pedir-te em casamento ao teu pai.  

publicado por Revista Literatas às 07:15 | link