“O Regresso do morto”


Policarpo Mapengo – Opaís

A morte está presente na sua obra, não só quando o “morto regressa” no seu livro de estreia, onde até “Ngilina” – no conto “Ngilina Tu Vai Morrer” – encontra nela a fuga do sofrimento. Depois de “Amor de Baobá”, Suleiman Cassamo voltaria a rir-se da morte em “Palestra Para Um Morto”. Mesmo nessas “profundezas” conseguimos com este escritor olhar para um país que se reinventa nos livros.
 
Os mortos, quando regressam, dizem, trazem a cruz pesada da sua própria tumba dobrando-lhes a coluna. Porém, nunca ninguém os viu de regresso. Mas eis que este retorna, com uma pesada mala de chapa no lugar da cruz. Vem arrastando um par de botas sólidas, a poeira desenhando continentes nas gangas suadas, o olhar sem chama debaixo do capacete.
Fazíamos um mergulho profundo em “O Regresso do Morto”, o livro de estreia de Suleiman Cassamo, como se a querer acreditar que os mortos regressam mesmo que ninguém os tenha visto regressar. A crónica da morte podia até saltar do livro para a “vida real” de um país que precisava desesperadamente regressar à paz. Foi o que disse Cassamo quando, finalmente, nos encontrámos para uma entrevista que já vinha adiando havia dias. O livro foi escrito num período de crise. Quando as ruas, mesmos as que vinham da África do Sul, de onde regressava o “seu morto”, cheiravam à pólvora e à sangue. Podia ter sido essa a realidade que condicionou o livro. Se é que os mortos se cansam, devia estar muito cansado. Não era só aquele morto que estava cansado, era um país dilacerado que “precisava regressar à normalidade”, disse Cassamo na entrevista que deu ao “O País” e à “STV”.
A imagem que se cria quando se pensa em Suleiman Cassamo é de “O regresso do morto”. Estamos perante um escritor que se apresenta com uma construção dramática, se olharmos para a forma como regressa o “morto” do seu livro?
Gostaria de me colocar de fora, como quem pára de longe e olha para a palhota que acaba de construir. Ficar de fora e olhar para o livro como um simples leitor. Apesar da carga do título, a ideia de “o Regresso do Morto”, mais do que drama, é a outra forma de utopia, ao acalentar a esperança de ter de novo no nosso convívio os entes queridos que um dia nos deixaram. É também a exaltação do imaginário colectivo. No Sul de Moçambique, ao longo de quase um século, muitos homens foram com o trabalho migratório para a África do Sul. Muitos perderam a vida em acidentes nas minas, mas na terra de origem as pessoas sempre guardaram a vã esperança de vê-los regressar. Em termos de construção literária, há uma tensão muito grande, criada na base de recursos muito escassos, na das forças latentes da terra, uma prosa com muito sabor à terra. Como disse um dia um confrade, “O Regresso do Morto é o povo pela própria boca”. Passa pelo livro um hino à mulher, o livro canta a luta da mulher enquanto esteio da família, num contexto em que homens estão ou em passagem ou em movimento. O imaginário retratado no livro não é exclusivo a Moçambique, é, além de universal, eterno. Creio que são estas as razões que estão na base da empatia com a obra no país e também fora, com algumas traduções pelo meio, que fizeram a UNESCO nomeá-la como representativa do património literário universal”.

Mesmo assim, num momento de drama, não só do seu livro quando aparece, mas também do país, consegue trazer, com alguns detalhes, a descontracção e algum humor. Era preciso dar uma pitada de humor no tempo de crise?
De certa forma, sim. “O Regresso do Morto” é um povo que nunca perdeu a fé, um país que renasce das cinzas. É um apelo à memória, que triunfa sobre a destruição da guerra. É um novo ciclo, de um país que se reinventa.
Apesar de ter surgido com “Amor de Baobá”, parece haver uma tendência de se identificar Suleiman Cassamo com a morte. E, o seu outro livro, “Palestra para um Morto” parece vir confirmar essa criação imaginária social. Como é que olha para a morte?
A morte é um tema que ocupa, nas nossas cabeças, volume, massa e peso. Apesar de ser uma constante da vida, quanto menos se falar dela melhor. Mas num texto como “Palestra para Um Morto”, a morte é tratada com ironia, com arrogância, se quisermos. É um texto que diz: ”Morte, tu não és nada. És apenas o outro lado de uma fronteira escorregadia”. Aliás, a morte é até uma condição suprema, aquela em que os humanos estão livres de todas as mazelas, despojados de qualquer dor. A situação em que já pagamos todas as nossas dívidas. Por outro lado, aos mortos sobrevivem as paixões mais intensas, o amor incurável, o ódio implacável. E tem-se então todo o tempo do infinito para perseguir com afinco e cálculo as paixões que eram da vida. Os mortos não desarmam.
Nelson Saúte, em “os Habitantes da Memória”, pergunta a quase todos os seus entrevistados se o tempo da crise era fértil para a produção artística. Como podemos olhar para a nossa literatura no tempo de crise, refiro-me ao tempo de guerra e à produção que temos agora?
A literatura moçambicana nunca parou no seu processo de auto-construção. Aquele foi, sim, um tempo fértil. Apesar de privações de muita coisa, foi também o tempo que testemunhou o nascimento de uma nova vaga de escritores.   
Também temos nesse período um momento de ebulição, não sabemos se podemos caracterizá-lo como de revolução, mas foi o momento em que os espaços literários eram centros de debates. A tendência de evolução do país veio “matar” essa revolução literária?
Foi um ciclo que se cumpriu. A entrada do país para a economia de mercado, por exemplo, trouxe outro tipo de preocupações, outra forma de estar. Antes, era o fervor das tertúlias, o entusiasmo das brigadas literárias, o Msaho no Tunduru, mas também os saraus de poesia em muitos dos espaços que foram tomados, depois, pelas igrejas. A inauguração recente de casas de fé, feitas de raiz, é por isso de louvar, quando olhamos para a forma de como certas igrejas entraram no país. Os espaços literários, para além de centros de debate, são essenciais como espaços de experimentação para os mais jovens. É neles que surgem talentos, o reconhecimento pela selva literária.
Na questão anterior referíamo-nos a toda a conflitualidade que surgiu e que daria origem à geração Charrua. Temos hoje condições para essa construção ou surgem outras exigências que fazem com que o movimento literário siga um curso tranquilo e sem o debate que sempre moveu o mundo cultural?
O debate é salutar e creio que acontece ainda, mas com novos processos, talvez pouco perceptíveis. Mas o importante é a produção, que continua. Tanto por parte dos mais velhos, como dos mais novos. Os ciclos literários são longos. Só daqui a algum tempo podemos ver a qualidade do que se colheu. A crítica literária será sempre importante.

A nossa literatura foi construída com base na poesia, com enfoque para os nacionalistas e mais tarde os de poemas de combate. Mas também surge Suleiman e Ungulani com a ficção. Era, para vocês – e os outros, nos lembramos também de Mia Couto e, mais tarde, Paulina Chiziane – uma corrida em contra-corrente?

Não propriamente em contra-corrente. Essa emergência da prosa fez-se à sombra do trabalho daquela geração de poetas. Essa geração tinha o grito da revolta na ponta da caneta. A nossa geração, no lugar de contrariar, completou a anterior. O Ungulani, o Mia, o Marcelo, a Paulina, o Aldino Muianga, a própria Lília Momplé, e tantos outros, são de uma vaga de escritores que viveu com fervor uma época de pico, que se seguiu à independência do país. Uma geração que assistiu ao chamado “boom” da literatura angolana, a partir dos finais dos anos setenta. Um “boom” ao qual correspondeu, sem rivalidade, mas com os seu meios. Uma geração com preocupações estéticas muito altas, que encontrou na prosa com a força da sua expressão. Mais salutar ainda é que foi uma geração que teve a preocupação de ler. Alguns leram com entusiasmo os mestres do realismo mágico latino-americano. 

Concorda com alguns – aqui se destaca Aníbal Aleluia – que a prosa moçambicana chegou com a Charrua? Ou melhor, como é que se pode avaliar a geração Charrua na construção literária nacional?

A Charrua é um pouco fruto do que dissemos. Um momento não propriamente de ruptura, mas de grande conjuntura literária. Mas a prosa moçambicana já vinha de trás. Entre outros, com Luís Bernardo Honwana. “Nós Matámos o Cão Tinhoso” é um marco importante. Mas também houve outros, como Orlando Mendes, Albino Magaia e o próprio José Craveirinha, que, para além de poeta, era também bom prosador. A geração Charrua teve o seu papel, mas ela não é o início e não será, certamente, o fim do percurso.

 Voltamos novamente à questão da construção. Como é que se constrói “Charrua”? 

O grupo Charrua nasceu do fervor da época, da busca interior e de reinvenção do país literário. Um grupo de jovens juntava-se na AEMO em infindáveis tertúlias. Alguns dos mais velhos, como Rui Nogar, também “cumpliciaram” no processo. O que é notável é que, embora o grupo tenha servido de sugestão, foram díspares as vozes que saíram da “Charrua”. 
Podemos falar de demissão, sobretudo depois desse momento em que também chegou a ser secretário-geral da AEMO? parece-me que toda a geração seguiu outros caminhos e renunciou ao debate ou à intervenção cívica e social.
Essa geração, depois do período em que Pedro Chissano, Hélder Muteia e eu passámos pelo lugar de secretário-geral da AEMO, nunca abdicou, mas soube criar espaço para os mais novos.
É verdade que tivemos um tempo de grande intervenção. Por exemplo, com espaços de colaboração na imprensa. Muita dessa colaboração fechou, mas a intervenção social desse grupo continua sob outras formas.
publicado por Revista Literatas às 04:56 | link | comentar