Quinta-feira, 30.06.11

O Apocalipse

Eduardo Quive - Maputo
Apocalipse
Muitos adivinhos já não sabiam nada do que acontecia em Deus me Livre!
Nenhum adivinho podia adivinhar tudo que se passava em volta do apocalíptico momento que pusera em apuros a antiga terra sagrada.
Podia espaçar-se muito no meio daquele nhima-nhima, que se instalou nas terras dos deuses, sem se quer distribuir minutos de tolerância. Os sacerdotes ainda tentavam dizer alguma coisa.
-          Mãe de misericórdia, mãe do Salvador, assista-nos nesta última agonia que se aproxima. – E ainda apelavam as multidões que fizessem qualquer reza.
-          - Orai irmãos, ao Deus nosso senhor.
Por outro lado ouviam-se gritos de socorros e nhandayeyos. Ninguém podia rezar, no lugar de agir com própria confiança e esperteza.
-          Já o demos oportunidade de fazer alguma coisa e nada fez. Deus que mata nunca dera vida!
-          Quantas vezes os nossos filhos, pais, irmãos, tios e sobrinhos, gritaram o nome desse Deus tal, antes que estas terras os levasse para as profundezas do além?
-          Orai vocês mesmos pelas vossas próprias vidas e aproveitem para dizer a Ele para se preparar, porque daqui a pouco estas terras que criou com a própria mão, vão me levar para junto dele e vou o matar pela segunda vez e será para sempre…sem ressurreições.
O antigo sacerdote exigia do seu próprio criador que dissesse a verdade às massas – “morrereis pelos vossos pecados” – E assim parecia ser.
Os homens que antes confiavam nas suas mãos para fazer alguma coisa já o faziam com os pés. Corriam como se fossem aves…velocidade por demasio desespero.
Tudo acontecia em jeito de “nunca vi”. Crianças que nasciam em cima de árvores. Ndambini que o diga, nascera por baixo do céu, onde todos homens se escondem quando estão nus.
A sua mãe esquecera no meio da correnteza das águas assassinas, toda esperança: casa, roupa, comida, patos e etc. esquecera também das dívidas e da pobreza.
Subiu na árvore com a barriga de que dependia sua filha antes de sair. Todos ficaram a conhecer o Deus me livre que se passava do tempo.
Os Cabrais deixavam também debaixo do solo que engoliu as nossas vidas: dinheiro e herança, fortunas e projectos de lucros fartos. Mas levaram com sigo os terrores do seu racismo que sempre se fez presente na pele dos pretos que os serviam. Em troca de quê? Em troca de torturas.
E o rei Ngonhama, ainda não tinha partido para seu eterno destino. Feiticeiros, curandeiros e adivinhos o protegiam.
Na altura, pairavam dizeres sobre leões que habitavam nas florestas das redondezas e que pertenciam a sua dinastia.
Todos eles eram parte do seu corpo e cada homem que matavam, a ele fortaleciam.
Não eram apenas falácias. Muitos foram os que confirmaram. Malaquias, for a exemplo dos que com a sua carne, os leões deram vida ao rei. Viu seu traseiro espetado aos caninos dos indomáveis. Também ficou ferra, mas ferra de ferido. Morreu. Depois de ter passado setenta e duas horas em delírios de dor. Dormia de barriga, mas podia se alimentar. Não podia. Porque ele é que era o alimento. Comida do Rei Ngonhama.
Dizia-se também que a vila do Leproso era outra parte da sua vida, enraizada nas terras mais selvagens do continente, até o Mwamulambo, cobra dos deuses, se rendia ao temido homem com curvas dos diabos.
Todos os feiticeiros, curandeiros e adivinhos o protegiam. Até os sacerdotes invocavam o seu nome na hora das bênçãos.
Todos viventes sabiam porque tinha que desaparecer mensalmente do seu lar, alguns bois e donzelas. Eram para seus Nhamussoros. Os seus Nhankwaves. Alimentando o seu obscurantismo.
E cada vez mais se engolia a terra que antes fora sagrada.
Ninguém estava para justificar alguns acontecimentos que registavam-se em jeito de Swo Suketana swiku… sim. Tudo tal como diziam as lendas. De repente…
Do Deus me livre, tal como os deuses se livraram, os homens também se iam na maior estranheza.
Cada segundo uma vida entregava-se ao inferno. Pouco a pouco Deus me livre livrava-se de gente. Ficava terra do Nada. Ninguém já habitava o lugar.

publicado por Revista Literatas às 07:31 | link | comentar | ver comentários (1)

O povo

Mukurruza - Lichinga

  
                            (A um povo humilde por aí…)
I
Maldito tempo difícil,
Soam balas encravadas nas paredes,
Acordam banhadas de sangue no rosto.
É terrível sacrificar se pela humanidade escolhida!
II
No irreparável cuspo da guerra,
Há um denomino que lhes enche
De tristezas e lágrimas
De caras secas e pálidas!
III
De suor nudez
Deita (se) milhares pelo avermelhado chão.
E tudo em volta fica encarnado!
IV
Pátria se atormenta
E de baixo de sol escaldante
Vai o povo sonhando liberdade!



___________________________________
Mukurruza, cresceu na terra dos seus pais (Quelimane) onde moldou a sua vida e a maneira de sentir as coisas que formam o homem (Dor, Amor, Paixão)
A paixão pela literatura encaixa-se no novo milénio, publicou vários poemas, contos e crónicas em jornais e rádios.
Colaborador de vários jornais da cidade lichinga membro de direcção do (CEPAN) Clube de Escritores poetas & amigos do Niassa.
Costa na colectânea de poesia, (Noite Amanhecida) publicada em 2009. E ainda membro fundador do movimento ‘’Gincana de arte lichinga’’

publicado por Revista Literatas às 07:20 | link | comentar

Excerto de Funan Mutin (Branca Flor)

Joana Ruas - Lisboa
E, como ela saísse para a rua , o cabo seguiu-a e perguntou: — Para onde vai, Fulan Mutin? 
—  Sou Maria Benedita,  filha de D.Carlos e estou lá para os lados da praia. A noite não tarda a cair e eu não quero viajar às escuras.
Maria Benedita chamou Olímpio e começaram a subir morro acima seguidos pelo cabo. Estavam já  naquela plataforma ondulada e sulcada de vales estreitos onde serpenteavam pequenos arroios alimentados pela  água suada pelos montes ensopados  e tendo em frente, velando como uma estátua de pedra, as escarpas do Mate-Bian e o céu tão perto das cabeças que parecia repousar placidamente sobre o Mundo Perdido, quando  o sino da Missão começou a tocar a finados. O rosto do cabo tornou-se grave.   
—  Eu acompanho-a até casa. O sino, quando toca antes de eu começar a jogar, dá-me azar. Mas espere aqui por mim que eu não dei resposta ao chinês.
E, tendo-se desculpado pela viagem perante o china,  Filomeno partiu com Maria Benedita.
Olímpio que com a espera se deixara adormecer debaixo de uma árvore, quando Maria Benedita lhe tocou no ombro para o acordar,  apesar de estremunhado, espantou-se de a  ver  com um desconhecido que depois de  pegar em Maria Benedita pela cintura,  a  colocou em cima do cavalo. E mais espantado ficou quando o desconhecido, sem cerimónia, tomou  o cavalo dele  para o montar. Já encolerizado com tanto atrevimento,  levantou-se de supetão e gritou: — E eu onde vou?  
Como nem ela nem ele cuidassem da sua pessoa, Olímpio achou melhor calar-se para ver se entendia melhor o que se estava a passar e foi andando a pé atrás deles que não pareciam apressados, pelo contrário, iam calados, mas Olímpio captou qualquer coisa no ar, impalpável mas demasiado presente para ser irreal. Era como se o mundo estivesse, de repente, todo sossegado. Pegou num galho para bater as ervas do caminho mas susteve o gesto. Podia-se quebrar o encanto e, mesmo só podendo vê-los de costas, sentia que apesar de montados em cavalos diferentes eles iam andando como se fossem uma só pessoa, uma só respiração, um só alento. Iam os dois tão paradamente andando que as borboletas poisavam nas crinas dos cavalos, nas orelhas e nas caudas. Quando em uníssono se olharam olhos nos olhos, os cavalos, sentindo-lhes a leveza,  ousaram baixar as cabeças e puseram-se a comer erva. Olímpio tossiu. Os cavalos começaram a trotar. E, como tivesse que correr atrás deles, gritou-lhes que parassem. Eles olharam para trás e começaram a rir.   
As nuvens corriam velozes  pelo céu fora. A saia azul do vestido de Maria Benedita enfunou-se como uma bandeira, o chapéu caiu-lhe para os ombros e as fitas da cintura levantaram-se para lhe bater no rosto. Pararam. Maria Benedita trocou  o vestido  pela lipa e prendeu o chapéu com um lenço que atou com um nó debaixo do queixo. Quando continuaram a viagem, o vento despenhava-se do céu descendo as montanhas num vozeirão tremendo, galgava colinas e prados e, ao passar junto às gargantas dos rochedos, atirava-se pelos desfiladeiros em assobios sibilinos. As montadas dispararam vale abaixo. Cavalos selvagens, soltando-se da manada, fustigados pelo vento que lhes desatava as crinas revoltas, acolhiam como uma riqueza inestimável o  vigoroso abraço da ventania, empinavam-se e relincham numa saudação estrepitosa, expondo as narinas ofegantes à picante  carícia do ar fresco. Os viandantes embrenharam-se na floresta onde a ventania sossegada rumorejava no cimo das árvores altíssimas até que saía da densa folhagem e, já cansada, se ia estender como uma brisa fresca sobre o mar. Desmontaram para descansarem. No meio da floresta , o vento entrava ali devagar como num templo. A atmosfera carregava-se do  perfume das flores e, no ar um pouco agitado, ainda as pétalas tombavam das árvores em miríades esmaltando a terra fofa. O vento trazia rumores vários, cicios e assobios e a frescura de uma primavera breve. Para as flores dióicas chegavam as núpcias: o seu pólen espalhava-se nos ares como o sorriso de um deus amarelo e,  no recesso das folhas, na benigna obscuridade que as cercava, as flores aceitavam com um frémito voluptuoso a carícia da brisa e, enlanguescendo, derramavam-se lançando no seio da doce brisa o pólen fecundante. Os ninhos castanhos ou cinzentos recebiam o benefício de uma leve pétala branca poisando no seu ovo azul. O botão da flor da lua, ao sentir a aproximação da noite, estremecia um pouco e entreabria-se para desabrochar, caprichosa, na noite alta. Tinham-se sentado em frente um do outro. Ele tirara a camisa para ela se sentar nela e Maria Benedita olhava o seu peito largo e forte de filho das montanhas. Ela enrolara nas mãos um lenço de seda bordado a violetas e ficara de olhos baixos, submissa e grave. O seu rosto perdera a jovialidade e os olhos, a vivacidade. Mesmo quando chorara ele vira por detrás das lágrimas a vivacidade tenaz, a determinação juvenil e quase caprichosa por um objectivo. Agora via-a de semblante grave e olhos que escondiam uma súplica. Ele desfez o nó que lhe atava as mãos postas e, tomando-as entre as suas, levou-as à testa.  
—  Eu começo a sofrer  antes mesmo da despedida. No corpo e na alma. Agora, quer partas ou quer fiques,  já não sou mais moça, sou mulher antes de ser noiva.
—  Eu estou aqui para responder ao teu sentimento. Vou pedir-te em casamento ao teu pai.  

publicado por Revista Literatas às 07:15 | link | comentar

Eles voltaram

Nelson Lineu – Maputo
Mano, mano
eles voltaram estão ai
não estou a mentir
não podia brincar com essa seriedade
querem falar connosco
depois de cinco anos de amnésia
finalmente lembraram-se de nós.
Estão a dizer
que temos que ir as urnas
todos prometem mudanças
não vão nos esquecer mais
o nosso voto será antídoto.
Para não arriscarmos
Temos que escolher quem esquece menos.
publicado por Revista Literatas às 07:08 | link | comentar | ver comentários (2)

Auto-quotidiano

Jopone Arijuane – Maputo

Há vezes que a tristeza faz me muito feliz
Quando triste lembro a felicidade vivida
Nunca da tristeza que vivo.
Felicidade é  bem compreendida quando se esta triste
Minha vida é  o lado feliz da tristeza  

publicado por Revista Literatas às 07:04 | link | comentar | ver comentários (2)

Vovó Zumbi

Luana Mccain – Brasil


     Era hora de dormir. Eu e meus irmãos tivemos um dia muuuuuito agitado. Primeiro, vovó levou a gente no parque
de diversões. Depois, no cinema. Assistimos Um dia com a vovó zumbi. Por mais que o titulo fosse
aaaaaaaassustador, o filme era de aventura.

               - Meus amores, já está na hora de dormir.
            - Vovó, a gente vai embora amanhã... não queria... foi legal passar as férias aqui – disse meu irmão
do meio, com aquela vozinha de sempre.
               - Eu também – os olhos da minha irmãzinha se encheram de lágrimas.

               Revirei os olhos.

               - Vovó, antes de dormir, eu posso comer aquele bolo de nozes que cê fez hoje de manhã?

               Ela fez uma cara pensativa. Segundos depois, falou com aquela calmaria de sempre:

              - Hmmm não, não pode. Você acabou de escovar os dentes.
              - Mas...
              - Na na ni na não.
              - Vovó, quero água – disse meu irmão do meio.
              - E eu tô com sede – falou minha irmãzinha.
              - Venham. Eu levo vocês.

              E eles foram. Só eu fiquei no quarto.
              Dez minutos depois.
              E a casa estava um puro silêncio. Senti uma intensa vontade de descer na cozinha e ver o que os três
estavam fazendo. Era sempre assim: vovó realizava os desejos daquelas malinhas e eu sempre ficava de fora.
            Fui pra cozinha, quietinho da silva. Eu queria pegar eles de surpresa. Um passo. Dois passos. Três...
e na porta da cozinha estava minha irmãzinha de cócoras e cabeça baixa. Eu cutuquei ela e nenhuma resposta. Peguei
ela pelos cabelos e enoooooooooooooorme foi o meu susto, eu vi ela sem os olhos e a sua língua caiu nos meus pés.
             Dei um pulo pra trás. Eu queria chorar, mas não conseguia. Virei pra cozinha e meu irmão estava
diante da pia comendo o bolo de nozes, mas atrás dele estava a vovó, com uns dentes-monstros, super afiados,
pronto pra abocanhar a cabeça  dele.

tags: ,
publicado por Revista Literatas às 07:02 | link | comentar

Teatro

Nilton Pavin* - Brasil


Furtaram o pseudônimo do ator.
Delinquência de ação nefasta,
Tórrida intriga burra, insensata.
Código soslaio de pavor, louvor

Minuta de um ente protuberante
Que agoniza na vida pústula,
Intenção maligna de uma fístula
Reinante em um submundo rutilante

Filmico de sensível infausto
Repleto de atos e rumo funesto
De uma vida simples e inclemente

Reluz de um ato vil e sincrético,
Ao transformar o mundo maléfico
Em um pandemônio atroz e inerente




__________________________________________________
*Nilton Pavin é jornalista profissional com 28 anos de experiência, fotógrafo, professor universitário e consultor de comunicação corporativa. Tem sete livros publicados. Formou-se em jornalismo pela UMESP, fez Pós-graduação em Planejamento Estratégico em Comunicação na UMESP, com o tema de tese “Comunicação Corporativa, a ferramenta para consolidar a empresa no Novo Mercado”. É também mestre em Comunicação Empresarial pela UMESP com o tema de dissertação “Comunicação e Governança Corporativa: a informação on-line das empresas do Novo Mercado com o investidor pessoa física”. Atualmente é diretor da Annapurna Editora, idealizador e editor do site que reúne assuntos de interesse das áreas de Comunicação Empresarial e Governança Corporativa.

Foi editor executivo das revistas Notícias Pirelli, Revista Imprensa e Imprensa Mídia, Revista Offshore, Revista Náutica, Mar, Vela & Motor, Guia 4 Rodas, Revista Horizonte Geográfico e Revista do Explorador. Colaborou com as seguintes publicações: Duas Rodas, Oficina Mecânica, Veículos Importados, Caros Amigos, Globo Ciência, Superinteressante e rádio Eldorado.
O site www.photopress.com.br reúne seu acervo fotográfico, que é composto por mais de 8 mil imagens de diversos países e do Brasil. Viajou para mais de 30 países e é autor da exposição itinerante (2004 a 2011) “Os Paraísos Proibidos do Himalaia”, organizado pelo Serviço Social da Indústria – SESI/SP.

tags: ,
publicado por Revista Literatas às 07:01 | link | comentar | ver comentários (1)

POESIA E CRISE – ensaios sobre poesia brasileira

Por Marcos Siscar
Resenha por Antonio Miranda
Autor: Marcos Siscar* Poesia e Crise: ensaios sobre a "crise da poesia" como  topos da modernidade.

         A crise da poesia como um topos, como um fenômeno recorrente, lugar-comum, uma declaração retórica e reiterativa, e própria do modernismo. “Dizendo de outro modo, o discurso da crise é um dos traços fundadores da modernidade” (p. 21), é a tese de Marcos Siscar, e que guarda relação com o presente. Um bem fundamentado conjunto de ensaios, ou uma constelação de capítulos, que parte de Baudelaire e Mallarmé — desde o desmantelamento do discurso romântico que levara a poesia ao auge de sua popularidade — até o seu desdobramento no pós-modernismo.
         Siscar evoca o drama da técnica “desde o momento em que ela é reconhecida como elemento constitutivo de uma poética” (p. 61), que assume “um pacto, como tentativa de  rejuvenescimento, de atualização, de invenção” ou até de “ressurreição”, na acepção de Marinetti. Um discurso da “crise” , até porque, no entender de Siscar, nunca deixou de estar em crise (p. 53).  Com suas contradições, onde Baudelaire reage à fotografia nascente como carrasco da pintura, enquanto Marinetti (e, no nosso tempo, Augusto de Campos) celebra o advento da máquina e do progresso, o tal “drama da técnica”, dentro e fora da poesia, como reflexo do mundo ou como seu instrumento formador, “como elemento constitutivo do estabelecimento de uma poética” (p. 61). Crise em estado perene, como topos da modernidade, “a exclusão da tekhne em proveito da episteme”.  Oposição entre técnica e pensamento, falso dilema mas, como pretende, motivo da crise.  Em suma, e superando o conflito, invocando Heidegger:

         Por isso, a técnica deveria ser entendida não só como um conjunto de 
         procedimentos ou instrumentalizados pelo homem, mas como 
         maneira pela qual ele se situa, se demarca como coisa do mundo, 
         estabelecendo modos de fazer parte deste mundo
 (p. 62-63)
         Também faz uma reaproximação a Mallarmé, lamentando que o poeta do hermetismo e da experimentação seja conhecido e reconhecido por uma parte (mal) estudada de sua obra poética e menos por seus textos críticos, cuja leitura ajudaria, no entender de Siscar, a entender  melhor o autor de “Un coup de dés...”. Dedica-lhe um capítulo inteiro (p. 83 a 102 — “O túnel, o poeta e seu palácio de vidro”, escrito para integrar a edição brasileira das Divagações, de Mallarmé, a propósito da tradução feita por Fernando Scheibe, embora o poeta francês seja citado e estudado ao longo de todo o livro Poesia e crise, em quase todos os capítulos. 

         Mallarmé, segundo Michel Leiris, citado por Siscar (p. 86), criou “uma linguagem perfeitamente adequada ao seu objeto”, e, apesar das dificuldades postas à leitura de sua obra, instruiu sua comunidade e influiu sobre as gerações posteriores, notadamente no século XX. E agora está sendo republicado e reinterpretado, superando os cacoetes e lugares-comuns — repetitivos — que circulam sobre sua poética. 

         No capítulo “Poetas à beira de uma crise de nervos”, Siscar pretende analisar e desmontar a argumentação do poeta Luis Dolhnikoff de que a poesia brasileira, depois da ruptura do concretismo, rompendo a tradição do verso, estaria passando de “verbalista” a “visualista”.  Para Siscar, “o problema está mal colocado” (p. 103) e argumenta que “não se pode minimizar o fato de que a poesia brasileira nunca deixou de ser escrita em verso, apesar do abalo concretista” (p. 105). E afirma que
Mais do que isso, é notório como o próprio Concretismo guarda uma relação com o verso: Haroldo de Campos praticamente nunca o abandonou, apesar de discretas experiências de espaçamento e da exceção importante da prosa deGaláxias; Décio Pignatari voltou ao verso no início dos anos 80, e a própria poesia visual é eivada de medidas métricas tradicionais” (p. 105).
         Mas Siscar sempre retorna a Mallarmé, e nos diz que o poeta de “Un coup de dés n´abolirá le hasard”, poema fetiche do movimento concretista, já não se referia à “Crise de Vers” (p. 107) e que “historicamente o texto de Mallarmé é muito menos um epitáfio para o verso do que um elogio do verso livre”, no que este tem de atualidade (de “crise”) e de capacidade de mobilizar a tradição (p.109). E arremata, categórico: “A operação mallarmeana é muito diferente da operação destruidora e bélica das vanguardas, que deseja operar uma ruptura, um corte com a tradição” (p. 109). E encarra o raciocínio com duas afirmações válidas: a) que o visual no poema de Mallarmé, sua espacialidade na página em branco, cumpre uma função musical, e b) que o poema opera essa passagem da unidade do “verso” para a unidade da “página”:

         Os “brancos”, com efeito, assumem importância, chocam de imediato; a versificação assim o exigiu, como silêncio circundante” (p. 110), conforme as palavras do próprio Mallarmé. Mallarmé não estaria propondo uma oposição entre verbal e visual, mas uma “proximidade entre o verso e o elemento espacial, e na medida em que esse espaço designa ou figura um certo de tipo de organização do verso e da versificação” (p. 110-111).  Embora seja reconhecível que não se reduz ao verbal, que transcende. Mas Siscar logo contrapóe: “Não há fim do verso, porque não há além do verso” (p. 131).
         A questão central foi explicar a tradução de Álvaro Faleiros, recente, em contraposição à tradução (pela reinvenção) pelo concretista Haroldo de Campos de textos de Baudelaire, valendo-se da interpretação do legado de Mallarmé  à luz dos estudos filológicos e históricos.
 “Faleiros distingue termos confundidos pela tradução de Haroldo, refaz o traçado de determinadas metáforas, adota soluções menos glamorosas para nossos hábitos poéticos (como a substantivação dos verbos) a fim de enfatizar a percepção das contrariedades do poemas” (p. 125).
         Falta que alguém se disponha a fazer um estudo comparado das duas traduções para expor as supostas diferenças de enfoque e de resultados concretos nos textos resultantes. 
 Augusto de Campos e o Não

         
O capítulo “A crise do livro ou a poesia como antecipação” está dedicada ao poeta e tradutor Augusto de Campos e, mais detidamente, ao seu livro “Não” (2005), traçando um paralelo entre a proposta de Mallarmé e a do concretista em relação à “crise do verso”. Siscar, ao contrário do que se propagou (na intenção de paideuma do Concretismo), “Mallarmé não é um poeta de vanguarda, como entende o século XX” (p. 133).  Segundo Siscar, “ o poeta [Mallarmé] é entendido no universo do colapso do verso” (p. 134):  
“Entretanto, aquilo que ele tem de mais relevante técnicamente (do ponto de vista de sua leitura concretista), especialmente no poema Un coup de des, não é exatamente fruto da sintonia com as técnicas de sua época; embora a exploração da espacializacáo (ou melhor, do "espaçamento", de um certo modo da "versificação") se apresente como experimentação poética, a figura evocada naquele poema para legitimar o jogo da alternância e da interrupção é a da partitura musical, elemento eminentemente erudito, relacionado com o passado e inserido num campo semântico distinto, o da voz musical (da "Música ouvida em concerto"), com a qual Mallarmé — e também Valéry — tinha um caso de amor e ódio. O modo pelo qual a
experimentação de Mallarmé se inseria no contemporâneo era de outra ordem e, aliás, sua postura de artista não excluía a mundaneidade das visitas de cortesia e a promoção de um verdadeiro "cenáculo" intelectual, apreciado por vários artistas da época.
(p. 132)
         Siscar faz um adequado e abrangente análise da poesia de Augusto de Campos, de sua vertente poundiana da invenção, desde o seu primeiro livro (“O rei menos o reino, 1949-1951”), onde o poeta se sentia “lavrando este deserto”.
         É bom lembrar que o Concretismo surgiu no momento em que o nosso Modernismo já estava decantado e desencantado, longe do furor anti-parnasiano e do acicate anti-sonetista. Seus cultores já não se incomodavam tanto com a “restauração conservadora” da Geração de 45 e até cometiam sonetos rimados... O Concretismo dava a impressão, nos anos 50, de dar continuidade ao espírito vanguardista de 1922, mas de forma mais radical. Modernistas como Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo, e até Carlos Drummond de Andrade, saudaram a novidade, embora, desde a Academia Brasileira de Letras, o pernambucano Olegário Mariano reagiu de forma contundente e sem fundamentos à Exposição Concreta de 1954, para citar a reação mais despropositada, mais ou menos nos mesmos termos que Monteiro Lobato reagira ao Modernismo.
         Mas aconteceram algumas polêmicas. Siscar cita a que aconteceu, tardiamente, entre Roberto Schwartz e Augusto de Campos, em 1985, mas outros intelectuais, velada ou ostensivamente, reagiram à ortodoxia do Concretismo e à suposta “morte do verso”. Lembremo-nos da reação moderada do drummondiano Affonso Romano de Sant´Anna e a escandalosa reação de Bruno Tolentino, que criticou o trabalho do tradutor concretista Augusto de Campos pela imprensa e até em livro sobre o assunto “(*1),(*2). Mas Siscar mostra que Augusto, ele mesmo, rompeu com a ortodoxia e vem se renovando constantemente. E chega a afirmar que “o rótulo de poeta já não é mais adequado e o livro quase não suporta mais tecnicamente aquilo que ainda é chamado de poema” (p. 142). E chega a ser até mais categórico: “Paradoxalmente, com o passar do tempo, a poesia de Augusto de Campos tem se tornado cada vez mais uma experimentação das potencialidades das novas técnicas e menos uma experimentação poética” (p. 144).(*3). Siscar chega a afirmar que a “invenção da “crise do verso” pelos concretistas foi um blefe produtivo, embora hoje nos pareça uma etapa vencida da história da poesia” (p. 146), tese que recoloca em cena o crítico Domingos Ferreira da Silva (*4), para quem só existe poesia no verso. Mas não podemos esquecer que o movimento do Poema Processo (Wlademir Dias-Pino entre os teóricos) foi mais longe propondo poemas sem versos e até sem palavras. Por certo, pouco antes de morrer (em 2011), Reynaldo Jardim, que foi o editor do SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil), que abrigava os neoconcretistas, telefonou para pedir-me poemas sem palavras para uma edição que ele andava cogitando... Ou seja, tudo leva a crer que a questão do fim do verso não está encerrada, ainda que em grupos mais radicais da experimentação poética ou de sua convergência tecnológica com outras artes. Tudo indica que vamos ter, com o avanço da tecnologia da informação, poemas animaverbivocovisuais (ouanimavocovisuais), sem esquecer poetas como Joan Brossa e Fernando Amaral que fizeram e continuam produzindo “poemas visuais” com letrismo, mas não pretendem formar palavras. Ou “Não”, como sugere o título do livro de Augusto de Campos.
A Cisma da Poesia Brasileira e a questão da crítica

No capítulo sobre “A Cisma da Poesia Brasileira” disserta sobre a “hipótese da diversidade”, numa fase marcada pela “ausência de projeto coletivo”, sem ismos e fora dos movimentos que pautavam a criação e a ação poéticas. A poesia brasileira a partir dos anos 80, sem as “linhas de força mestras”, segundo Siscar, refletem uma retração ou refluxo com relação às tensões das décadas anteriores. Nos estertores das forças opostas do Concretismo e da poesia marginal, liberadas agora do engajamento político e, de certa maneira, orientadas pelas correntes liberalizantes e globalizantes em voga.  Faz referência a Cacaso, Chacal e Francisco Alvim que encarnam a geração precedente do poema da dissolução, que circulavam em suportes frágeis, fora do circuito tradicional, mas que logo foram absorvidos pelo mercado comercial do livro e das livrarias. Inclui Armando Freitas Filho e sua “antirretórica visceral”, que expressa as experimentações verbais próprias do pós-concretismo. Inclui também Orides Fontela, a “mística feminina” de Adélia Prado, com discursos mais diluídos e coloca a inventividade linguística e metafórica de Manuel de Barros e a metafísica erótica de Hilda Hilst. Lembra a polêmica em torno da poesia visual de Augusto de Campos, cuja obra permanece vigente, sobretudo mediante os recursos telemáticos. Lembra um quase manifesto de Haroldo de Campos anunciando a “poesia pós-utópica” sobre a “presentidade” (no entender de Siscar) mas que teria sido o “enterro do espírito  aventureiro da vanguarda” (p. 152).
         Estamos diante de um impasse, sem respostas aos desafios colocados pelos poetas da nova geração. A disjuntiva estaria na oposição, não superada ainda, entre a poesia semiótica e tecnológica e a poesia do cotidiano, questão sem solução no nosso entendimento.  Os casos emblemáticos de Paulo Leminiski e Ana Cristina César coroam esta divergência e convergência, pois o primeiro vem de uma experimentação amalgamática de poesia concreta, marginal e orientalista e a segunda pautou-se num discurso “dilacerante de desordem moral e estética da experiência contemporânea”(p. 156).
         Biografia e autobiografia no cenário da criação poética. Hedonismo e dissolução, síntese que Arnaldo Antunes faria ao usar tecnologias avançadas, sem abandonar o personalismo. “O poeta pode então reivindicar como matéria prática não a experiência vivida ou o espírito de experimentação formal, mas a cumplicidade poética com o insignificante, com os elementos mais “inúteis”, restos da cultura e da modernidade técnica” (p. 161) que perpassa a poesia de Manuel de Barros, mas que se amplia em muitos poetas de diferentes tendências. Como no caso de Sebastião Uchoa Leite, que também foi um tributário dos formalismos precedentes.
         Siscar não aborda a questão fundamental da poesia de feição neobarroca, autodenominada “de invenção”, que é cultuada sobretudo entre poetas que vêm da academia. Não da academia literária dos antigos, mas das universidades e que são, a um tempo, poetas e críticos, antologistas e blogueiros, e que pautam a poesia contemporânea a partir do Centro-Sul do país, através de revistas impressas e virtuais, de ensaios e eventos acadêmico-literários. Não são a maioria, mas aparecem como tal, hegemonicamente, até mesmo ignorando outras vertentes da poesia contemporânea. Traduzem, criam, publicam e criticam numa ostensiva plataforma de promoção e de auto-promoção, não raras vezes citando-se uns aos outros. Seguem uma linhagem que tem raízes latino-americanas, notadamente com o pedigree de um Lezama Lima e seu “inimigo rumor”.
         O menos conclusivo dos capítulos é certamente sobre “As desilusões da crítica de poesia”. Apregoa a cisma da poesia em relação a si mesma, mas como desconfiança de quem publica ou interpreta poesia — digamos, “a crítica”.  As aspas em “a crítica” são do próprio Siscar.
         A poesia teria empobrecido, depois do fim das vanguardas, do “pós-utópico” e perdido espaço nos suplementos literários, nas estantes das livrarias e até na autoestima dos poetas. Literatura “à deriva”, no dizer de Fábio de Souza Andrade (2004, op. cit. por Siscar), apesar da “vitalidade das revistas especializadas, das antologias, na vulgarização do gesto antológico e do artigo de situação— essas que são as tentativas de organizar o sentido de um contemporâneo carente de clareza sobre sua própria identidade” (p, 170).  Fase de desencontros, de desencantos.  A dificuldade de identificar um ou alguns poetas representativos do momento, embora as antologias tentem fazê-lo como no caso de Heloisa Buarque de Hollanda, com um titulo desorientador, mas simbólico  — “Esses poetas” — como a referir-se à coloquialidade da temática vigente.
         A poesia deve dizer a que vem? Deve formular um universo de coerência, de pedagogia, uma estratégia de ação? (p. 172).  Devemos confrontar com o tema d “As ilusões perdidas da poesia”, como cunhou Silviano Santiago? Vale ressaltar então que “Por isso, a crise da poesia deve ser pensada em paralelo com a crise que se atribuiu hoje à crítica” (p. 177).

Finalizando...

         Não podemos deixar de referir-nos ao capítulo ”A Poesia e seus fins”, em que analisa uma carta de João Cabral de Melo Neto à colega Clarice Lispector, em que revela elementos sobre sua formalização poética e em que apresenta a ideia de uma revista, e, mais adiante, onde Siscar também inclui um texto denso sobre a poesia “estelar” de Haroldo de Campos que vamos saltar e deixar aos leitores a oportunidade de desvendá-los no volume original.
         Finalmente, tem também a proposta atual (ou do fim do século) de uma “poesia de invenção”, não abordada por Siscar, de contornos não devidamente reconhecíveis pois a palavra “invenção” pretende referir-se a uma criação dissociada da realidade imediata e do mero confessionismo, para registrar um campo criativo fora do naturalismo e do realismo. Afinal, “!invenção”, na literatura sobre poesia brasileira, é uma palavra semanticamente muito poluída...
         Vamos ficar por aqui. O instigante livro de Marcos Siscar segue em capítulos sobre as “Versões da História” que mereceriam outra resenha.  Vamos concluir que a leitura do livro nos leva a crer que, hoje, ser moderno é ser ultrapassado; ser vanguardista, hoje, é ser obsoleto, formalista, geométrico, aético e profilático. Não é à toda que um poeta da novíssima geração declarou que esta dissuasão não é sua, dele... Da pós-modernidade agora passamos à hipermodernidade. Pois, pois.
________________________________________________

(1)            TOLENTINO, Bruno. Os Sapos de Ontem. A polêmica Tolentino - Campos.  É pau puro!  Rio  de Janeiro: Diadorim Editora, 1995.  120 p

(2)            Um estudo acadêmico também analisou a ortodoxia do poema concreto: CABAÑAS, Teresa.  A Poética da Inversão - representação e simulacro na poesia concreta.   Goiânia: Editora UFG, 2000.    

(3)            Quando eu estava em Buenos Aires, em 1962, participando de exposições com os grupos Madi e Inovación, de Kósice e Vigo, ao ser convidado pelo Centro de Estudios Brasileños para dar um curso sobre a poesia concreta, preferi intitular o ciclo de palestras como “Arte Verbal de Vanguardia”, evocando o princípio da integração das artes, a partir de Max Bense, e vi que tempos depois Jakobson usou este mesmo termo, mas numa acepção mais laxa. Ver: http://www.antoniomiranda.com.br/da_nirham_eros/dos_exposiciones.html

publicado por Revista Literatas às 06:54 | link | comentar | ver comentários (1)

A Revista Literatas

é um projeto:

 

Associação Movimento Literário Kuphaluxa

 

Dizer, fazer e sentir 

a Literatura

Junho 2011

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
15
16
17
18
19
20
21
24
25
26
27
29

pesquisar neste blog

 

posts recentes

subscrever feeds

últ. comentários

Posts mais comentados

tags

favoritos

arquivo

blogs SAPO