Quinta-feira, 03.03.11

Ruatina


Autor do artigo
 De: Vicente Sitoe
Sou mendigo, isso... todos sabem. Até eu sei e tenho certeza. O que eu não sabia é que alguém pudesse tirar proveito dessa minha mendicidade. Nos outros quadrantes do mundo o mendigo levanta a mão ao rico, mas neste meu quadrante a situação é inversa: o rico é que mendiga ao mendigo.
O que seria do nosso país sem nós, os mendigos? Não sei se seria melhor ou pior do que é. Somos a cara feia, esfomeada, tristonha e cansada de não trabalhar. Por isso somos úteis para alguma coisa que ainda não sei o que é. Talvez para servirmos de pano de fundo para uma determinada finalidade, que desconheço.
- Calate-te, seu mendigo!
Não quero calar. Se acha que estou a falar demais não me escute. Ou melhor, se acha que estou a escrever demais não leia.
Continuando. Passei toda a minha vida na rua, por isso levo a rua no meu coração ou talvez a rua é que leva o meu coração. Mas seja como for, sou da rua. Vivo e moro na rua, assim como os outros vivem e moram nas suas casas. Na rua, antes do sonho que tive ontem, eu não tinha nenhum futuro.
Ontem sonhei com muitas luzes a saírem de mim. Nesse tal sonho fui ensinado que apesar de ser mendigo sou cidadão. Tenho direitos, esqueçam os deveres porque a sociedade acumulou muitas dívidas de deveres comigo. Nesse sonho eu ia à escola, até porque ainda me lembro de algumas das coisas que aprendi, pois as apreendi.
Todos os dias têm sido iguais para mim, mas isso vai mudar. Todos os dias acordo com o barulho das solas dos sapatos das pessoas que galgam impavidamente o chão em que durmo e passam por mim sem sequer me ver. Aliás, me vêm mas preferem fingir que não me vêm, só para evitar que eu lhes interpele e profira aquele habitual discurso dos meus companheiros:
- Tio, ni kombela a male ni ta chava a pau.[1]
Só que eles se esquecem que, assim como eles, nós também somos diferentes: o que uns fazem, não fazemos todos; o que todos fazemos, não fazem uns. Estou a falar de estudantes, funcionários públicos, trabalhadores, vendedores, intelectuais e outros que sem compaixão nenhuma passam por mim dia-a-dia.
Até o próprio dia passa por mim sem deixar a sua solidariedade com a minha situação, apenas lembranças. Lembranças do amanhecer do dia seguinte.
Eu não tenho rotina, tenho ruatina. Tudo o que faço todos os dias se encontra tingido e matizado nas ruas. A rua é a minha casa, minha escola, meu hospital, minha igreja, meu todo-lugar.


[1] Tio, estou a pedir dinheiro para comprar pão (Changana)


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publicado por Revista Literatas às 01:27 | link | comentar

Noite de Deuses

De: Américo Matavele - Maputo
 
 
Noite de deuses respeitados
Soa o tambor indígena furioso
Fumo de fogueiras gotejando pelas frestas da lua
Homens seminus formado um círculo
Gritam canções melódicas de roucamente.
 
E ali, no meio do círculo prateado pela lua
Donzelas com sorrisos tímidos dançam
Os pés deslizando suavemente sobre a areia
As ancas leves ondulando ao sabor do som
As missangas reluzindo a cor do forte fogo .
 
O tambor aumenta a velocidade do ritmo
As donzelas estão em transe profundo
Capturados pelos deuses das florestas
As ancas abandonadas ao sabor da cadência
Os frágeis braços seguindo o querer do tambor.
 
Eis que a floresta ganha ritmos e movimentos
Os gritos tornam-se unânimes e fortes no meio da noite
O tambor rufa, rufa, rufa, raivosamente forte
As donzelas mexem-se voluptuosamente
Os corpos jovens reluzem de suor.
 
É o regresso às origens esquecidas
Nas noites tristes da "civilização" imposta
500 anos passados restrigindo estas danças
Que ressuscitam os deuses ancestrais
Na verdadeira África que se necessita.
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publicado por Revista Literatas às 01:24 | link | comentar

O sentido da vida

De: Vicente Sitoe

O mundo é uma bola quadrada
que não pode ser jogada
A vida é uma linha recta
que não anda directa
porque está cheia de curvas
A vida pega-se com luvas
Tudo perdeu sentido
O mundo já não é colorido
Ir para frente é olhar para trás
A vida passa num zás
Quem segue a lógica não é demente
Pessimista morre cedo e descontente
Tudo vai acontecer, só não ao mesmo tempo
A vida é um grande campo
O tempo passa e nos leva junto
O que não existe neste momento
em breve existirá
E em breve também morrerá
A alma guarda segredos consigo
Ter paz é ignorar o inimigo
Ser abençoado é uma dádiva
A maior arma é uma voz viva
Ser forte não é bater nos outros
é saber evitar maus encontros
é saber sair dos escombros
Ser amigo é dar os dois ombros
O sentido da vida é uma confusão
Mas a esperança não é uma ilusão
Atrevido é quem arrisca
Pular o risco não é morder a isca
é procurar ver para além do cenário
A vida corre como um rio
Nesta vida nada é por acaso
Cada caso não é um caso
A felicidade é uma escolha pessoal
A alegria é temporal
A fartura é ocasional
De todas queixas, a fome é a principal
A vida é unidireccional
Cego é quem não descobre o seu amor
Santo é quem nunca sente rancor
O coração anda cheio de dores
porque o mundo perdeu as cores
Mas bem fundo germina a esperança
de ver a vida pela visão de uma criança
Porque a vida é um lindo poema
Cada acontecimento é uma rima
O amor é o maior enigma
O coração é um quebra-cabeça
O corpo é que toma a nossa liderança
O sentido da vida é uma incognita
E o ser humano é um poeta
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publicado por Revista Literatas às 01:16 | link | comentar

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