Por Lucílio Manjate
- 1. Dos frutos do amor
“Tudo que sei dizer-te é que és nua:
E lenta a flor, como o Sol, eis que de múltiplas formas te desabrochas em mim: as tuas mãos de vidro, lentas, os teus lábios húmidos, quentes, à forma como me beijam. Caída chegas-me pelo corpo, pela alma. És lenta, e nua explodes, como uma mina aberta à memória. És alta como pólen, a doce lentidão como me chegas, vagarosa pela boca, a vocação com que o fazes: lenta no beijo, até ao tutano, lenta às carícias, até às trompas de falópio. Tua a lentidão uma fonte de água, sem rumor, incessante. Tua a vertigem, repetitiva como me chegas, quente, suave, febril.” – p. 11
Ao apresentar a nova obra de Adelino Timóteo, gostaria de destacar dois signos de enunciação poética que me parecem representar os fundamentais núcleos semânticos da obra. Primeiro, o da identificação irónica do “eu” poético em relação à entidade que interpela. Segundo, o facto de essa identificação ser co-referencial em relação à “nudez”, palavra-tema que ao longo da obra ora é dessacralizada ora sacralizada.
As noções de “identidade” e “identificação” são recorrentes nos estudos literários e culturais. A noção de “identidade” é, muitas vezes, entendida em primeiro grau, como aquela que é cunhada a partir de dados empiricamente verificáveis, como a cor da pele, o sexo, atc. Em segundo grau, a palavra “identidade” remete-nos para uma construção simbólica no próprio processo de sua determinação; trata-se de uma entidade que não se concretiza em função de um único referente empírico, mas de vários, num processo reflexivo que possui uma dimensão de exterioridade. Nessa aceitação do que é exterior, um Eu não nega um Outro, pelo contrário, aceita que a sua “personalidade” é forjada na tensão entre dois olhares, o seu e o do Outro.[1] Há-de ser por causa desta relação dialéctica entre o interior e o exterior que Derrida afirma que “Uma identidade nunca é dada, recebida ou atingida: só permanece o processo interminável, indefinidamente fantasmático da identificação”.[2] Hoje sabemos que o sexo já não identifica nem homem nem mulher. Hoje percebemos que somente o diálogo, a abertura para o Outro, permite perceber que interagirmos com homens que na verdade são mulheres ou mulheres que na verdade são homens, ou ainda homens e mulheres que nem são homens nem são mulheres. Ora este diálogo não é identidade, mas identificação.
O livro que Adelino Timóteo hoje nos apresenta é composto por dois momentos. O primeiro momento, Dos Frutos do Amor; o segundo, Desamores até à Partida. A obra é uma interpelação ao leitor, mas uma interpelação em segundo grau, momento em que deixamos de identificar na obra o tema do amor canal – como veremos – e passamos a interlocutores de um processo de identificação que tem como mote esse tema do amor sexual.
Na primeira parte do livro, Dos Frutos do Amor, ao interpelar a entidade a quem se dirige, ironicamente o “eu” poético identifica-se: “Tudo que sei dizer-te é que és nua … Caída chegas-me pelo corpo, pela alma.”
Não será tudo o que sabemos dizer a soma das experiencias sensoriais, a síntese do que ouvimos, do que vemos, do que sentimos, do que cheiramos, do que provamos? E Não será esta síntese, portanto, o universo metaforizado na palavra “Tudo” que “eu” poético diz?
Se assim for, o “eu” poético do Adelino Timóteo diz o seu universo sensorial ao mesmo tempo que o interpela. “Tudo que sei dizer-te é que és nua… Caída chegas-me pelo corpo, pela alma.”. Tudo que sabe dizer, ou seja, tudo o que ouve, vê, sente, cheira, prova, é nu. A “nudez” há-de ser, portanto, o núcleo habitacional da enunciação poética desta obra.
A interpelação que o “eu” poético faz à entidade a quem se dirige inaugura uma relação de identificação que o autor dá o nome de Amor, talvez porque acredita que todos nós sabemos – ou pensamos saber – o que essa palavra significa. Mas, de facto, o Amor aqui é apenas exemplo dessa relação superior. Não se trata de uma relação de amor, desse amor que povoa o nosso imaginário, apesar de o “eu” poético interpelar uma mulher, fonte desses sentidos que lhe chegam pelo corpo, pela alma. É mais uma relação de identificação que tem no imaginário que construímos sobre o Amor a sua metáfora. É a partir dessa metáfora do Amor, de um “eu” poético que se afirma em função de um Outro concretizado e poetizado, que Adelino nos convida ao entendimento do conceito de identificação como tema superior do seu livro, uma espécie de arquétipo de todas as relações. Para tal, o poeta serve-se, estrategicamente, da “nudez”, e de um imaginário que associa a nudez à disposição sexual, como confirmam as ilustrações feitas à obra, de Silvério Sitoe: “Tudo que sei dizer é que és nua … Caída chegas-me pelo corpo, pela alma.”.
“Posso escrever-te a tua húmida flor, a rosa côncava, carnosa, em seu fundo negro sem fim: A tua flor é a língua do fogo, a borda alongada das pétalas, o fio volátil em meus lábios. Chega-me lenta pelo pavio, no mar sem fim dos meus lábios, na água sem fim das palavras, onde cada gesto teu se repete como um refrão, com graça. Posso escrever-te a tua flor: aberta como uma asa és lenta, lenta que me fazes vibrar. E tu és feita de silêncios, de telegramas que se me chegam pelos teus beijos, cartas e telexes que me chegam pela ponta da língua, às digitais, esmerada no que te encarregas pela tua boca. Posso escrever-te a tua flor: trazes-me aos lábios os fios de uma aranha tecedeira, a lentidão da abelha e o mel num cântico com que transcendes à lua, a Marte venial, divinal.” – p. 12
De facto, a nudez é o signo que Adelino Timóteo elegeu para celebrar o amor carnal. Com efeito, as imagens eróticas desfilam, gradativas e lentas, num filão descritivo desse desejo sexual que se vai celebrando e cujo êxtase encontra na voluptuosidade da palavra, na expressão libidinosa que progride sempre lenta pelo corpo nu da mulher, a sua representação suprema.
Parece-me que a primeira parte deste livro diz respeito a esta celebração. A celebração do universo-mulher, da mulher nua, ao qual o sujeito poético irremediavelmente se entrega, porque somente assim se define, nu. Mas aqui o perigo, o de pensarmos que Adelino Timóteo apresenta-nos poemas eróticos. O erotismo nestes versos não é um fim em si mesmo, mas um ponto de chegada que tem no conceito de identificação o ponto de partida, onde ou quando precisamos ser Outro para sermos Nós. É o ideal da fusão de todos os sentidos.
Ora Adelino Timóteo confunde-nos exactamente ao apresentar essa relação como sexual. Na verdade, o poeta acaba dessacralizando esse amor feito de carne, como quando queremos “fazer amor”, ou mesmo quando não queremos. Ora o acto de dessacralização é também um acto de sacralização. E sacralizar é tornar sublime. E sublime é esta entrega do “eu” poético à essa imagem da mulher nua que se torna o seu universo. Por isso é que o conceito de identificaçãoem Adelino Timóteo é um espaço sublime e uma vocação a ser seguida, a vocação de sermos a totalidade de um Outro para sermos Nós. Uma vocação que nos coloca na eminência de sucumbirmos se o Outro, que faz de Nós o que somos, deixar de existir, como acontece na segunda parte do livro – Desamores até à Partida.
- 2. Desamores até à Partida
“Eras lenta, amorosa, para lá do limite da paciência. Como uma sinfonia dos oboés, ritual me acariciavas que não te fartavas, delicada que me alongavas os bornais, firme a saliva pela língua. … Aquele amor cândido. Aquelas amoras dóceis. Era só uma lembrança, pois então quebraram-se as asas e nenhum de nós os dois voa. E o silêncio a si se interpela. Já não é. E sempre era de noite quando volvia aos teus prumos. E a pergunta com que o silencio se me interpela se cristalizará com o tempo. Eis mais este presente dilacerado que nos sobrou. Delicada a chuva sobre a celha dos rostos até à partida.” – p. 46
Obviamente que já não se trata aqui dessa fusão de sentidos a que o “eu” poético recorre para se definir. Mas aqui percebe-se que a tese que Adelino Timóteo formula na primeira parte do seu livro é a de que a abnegação, pura e verdadeira, natural e sincera, a que nos votamos quando amamos carnalmente ou sexualmente é a manifestação da noção de identificação enquanto arquétipo a ser realizado, utopia a alcançar, pois agora lembramo-nos de que palavra “nudez” denota também os sentidos simplicidade, singeleza, verdadeiro, sincero, natural. O desamor que se regista na segunda parte da obra reforça esta ideia, a identificação como processo de construção identitária exige de nós essa nudez que teimosamente camuflamos. Tal como quando fazemos amor, nascemos todos nus. E o que há de comum entre fazer amor e estar nu é o encontro com o universo. Ou seja, o universo do Homem nunca deixou de ser a nudez. Conceber a nudez como ponto de encontro, de naturalidade, de sinceridade, de verdade e pureza, e assim, olharmo-nos sempre nus, ainda que vestidos, seria a mais genuína, a mais sublima expressão de identificação, onde e quando somos todos iguais, ainda que diferentes.
[1] Bernd, Zilá. Literatura e Identidade nacional. 2 ed. Porto Alegre: UFRGS, 2005.
[2] Citado por Zilá Bernd.