Prosa poética de Aline Pereira - III




Distraído ouvindo a gaiola canariar, o coronel palita os dentes quando, de repente, um menino empregado interrompe a leitura da pequena hóspede de olhos verdes, que atende por Clara. O homem na cadeira de balanço é também o dono de todas as coisas ali. Na estranheza de seu olhar a distância do impressentido amor: “Que é?” O menino responde: “Uma onça matou meu pai.” O silêncio das coisas que não estão acontecendo se fez. No estômago de Clara uma perna de carneiro chutava com força. “Por favor, devo ser apresentada.” O menino empregado, que é também a infância do meu herói, parecia intratável, talvez uma pedra, talvez uma testa enorme e desfigurada, por isso os demais criados o levaram antes que pudesse devolver à jovem o cumprimento. Clara mal abre a boca. O herói infante arqueja: “Sabe, hoje ouvi tantas modas! Todas sobre peixes...” Cantava sempre uma que parecia ter sido escrita de propósito para ela. De algum modo livre, o menino aproxima a boca do ouvido de Clara: “Conheço uma adivinha, toda em poesia, e toda sobre peixes.” Ela queria ver tudo, numa sensação imediata da vida desperta. O coronel só sabia da dívida que tinham com a terra e que era preciso pagar. A terra era uma prisão. Observando a aia parda que lhe atraía tanto, o velho proprietário pensou: “Que é que eu vou fazer?” Uma das sobrancelhas erguidas, bateu o cajado-estaca no chão e levantou-se: “Onde está o criado que devia responder?” A luz já não fazia parte do cenário. Seguiu-se então um confuso rumor. Eram as moscas. Na medida em que as moscas avançavam, os pombos fugiam. Confuso, o dono pediu aos pombos que voltassem submissos. Então Clara, numa voz que parecia mais um arrulho: “Seria um prazer.” E voltando-se ao anfitrião de bigode: “Posso?” O bode não responde sim: “Primeiro o peixe deve ser pescado, depois comprado.” Num sussurro simulado, a jovem olhou para o homem como se visse um condenado a morrer. “Muito obrigada, mas de fato não preciso do seu lugar.” Nisso, o menino sentiu a existência embalar seu corpo e, então, eles dois, Clara e o pequeno sertanejo, caminharam por cima das posses. Ele pôs a enxada ao ombro e seguiu lentamente a caminho da roça, até que puderam ver o capim ainda molhado de sangue. Do cenário exalava um cheiro novo, e ela reconheceu o contraste no ato. Era o sangue do soldado morto tingindo o descampado verde. O menino não sabia que a cidade existia, nem mesmo que havia um país. Ele ignorava o que eram os pintores, mas conhecia a poesia. Ao ver Clara perseguindo o xale que flutuava, enxergava também a música. A pequena era tão fria quanto a terra, e porque o céu o odiava, ele começou a sacudi-la de um lado para outro com força. Ela não opôs a menor resistência, mas seu rosto foi ficando cada vez menor, e os olhos maiores, muito grandes e verdes a ponto de se fundirem em apenas um. O olho de mulher crescia como o sol na alvorada, e o menino empregado não teve mais dúvidas. Era ela a bruxa que procuravam. No palco do desmantelo, a sombra que absolve os pecados da terra numa enorme cova. Só depois, com a falta do sonho fugaz da realidade, o herói que perdera o pai maldisse todas as onças. Nesse exato momento, a menina rosnou. Ele sabia, tristonho, que não tinha capacidade para matar a onça, mas podia tocar no segredo íntimo dela: “Em que você se transformou?” Clara respondeu: “Na sua vida, tenho certeza.” O herói finalmente chorou: “Se você realmente estivesse no meu sonho teria gostado, ouvi tantos poemas, todos sobre peixes!” Enfim, algumas horas depois eles retornaram. Pela primeira vez, pediu a morte o meu heróico infante. A menina voltaria logo para casa, tão longe dali, enquanto ele mastigava uma vida inteira para chegar ao seu destino.
publicado por Revista Literatas às 08:40 | link