Contos do Fantástico

Jorge de Oliveira - O País
É uma obra de muitas culturas (religiosas, locais, naturais, espirituais), mostrando o quão diversificado é este povo e, no fundo, olhando para esse tempo longínquo com a possibilidade que a distância temporal permite...
De Aníbal Aleluia, escritor moçambicano já falecido, publicaram-se duas obras, “Mbelele e outros Contos”, “O gajo e os Outros” e, agora, “Contos do Fantástico”. Esta última, escrita em 1988, é de natureza totalmente diferente do que têm sido, ao longo dos últimos anos, as obras literárias moçambicanas.
1. Com uma linguagem erudita, muito apurada, temáticas comuns, mas tratadas de forma bastante diferente, a obra trouxe estórias de ficção baseadas no além, naquilo que as pessoas muito falam, só que ninguém alcança. A maior parte dessas peripécias são resultantes do que ouviu ao longo das suas viagens por este país fora;
2. Até a leitura e crítica social apresentada tem um cunho e uma forma não muito simplista, o que obriga o leitor a recorrer a uma análise baseada na conotação;
3. “Cria, inventa, procura, experimenta. Observa com os teus próprios olhos. A ti é que mais interessam os fracassos e os triunfos. A eles não os afectam. Se tiveres aborrecimentos não serão eles a saná-los, embora, caso tenhas louros, sejam os primeiros a enviar relatórios às suas direcções para valorizarem as suas informações de cada ano, com vista a futuras promoções”;
4. É um texto com linguagem muito apurada, dir-se-ia mesmo um português arcaico que nem a todos atinge, exigindo muitas vezes o recurso ao dicionário, mas de uma beleza acima do comum. Um estilo agradável, diferente do usual, e que nos faz sorrir e perceber que a língua também é um espaço infinito de que nenhum humano se pode apropriar na totalidade;
5. A dado momento recorda o “Piratas das Caraíbas”, com seres meio humanos meio aquáticos a viverem em baixo da água, com muita escravatura à mistura, e, por outro lado, vale pela mostra de aspectos culturais que, em tempo de colonização, diferenciavam a visão do colonizador da do colonizado;
6. “Meteu-se imediatamente no mato. Estava ansioso e já antegozava o seu triunfo sobre os javalis. Gostava que os animais alvejados dessem luta. Quando o javali eriçava as cerdas, expedindo chispas dos olhos pequenos, e o seu rosnar transformava-se num som agudo, Luís sentia-se mais homem, porque o animal parecia lançar-lhe um desafio. Então os seus músculos ganhavam dureza, rilhava os dentes e avançava afoito como se se quisesse entregar a um violento corpo a corpo”;
7. É uma obra de muitas culturas (religiosas, locais, naturais, espirituais), mostrando o quão diversificado é este povo e, no fundo, olhando para esse tempo longínquo com a possibilidade que a distância temporal permite, como vários tabus e preconceitos (que sempre foram demasiados) foram sendo ultrapassados sem nunca terem sido explicados (o que é óbvio, porque sempre se basearam em mentiras e lendas sem base científica nenhuma);
8. Livro de enorme riqueza narrativa, apresenta episódios que se vêem, logo à partida, tratar-se de imaginações que nunca existiram, assentes em dogmas e mentiras embutidas, ao longo de décadas, nas pessoas, até, por mais incrível que pareça, se tornarem defensáveis por alguns charlatões. E alguns dos exemplos mostram isso, como o caso de um fantasma de mulher que apanha um mulherengo, das profecias amaldiçoadas que são feitas entre humanos e se cumprem, de contactos com mortos, de Homens – Animais, de pessoas que não se pode prender ou bater e até sereias;
9. “E todos tinham medo dele. Os conselheiros, em vez de conselhos, gritavam ditirambos. O ‘censor público’ instituído pelo régulo velho para moralizar a corte e a sociedade não teve similar no Sudoeste. Aliás, Macarala não deixava os indunas falarem, salvo para proferirem elogios. E o Sudoeste começou a empobrecer, acabando por cair numa indigência generalizada, enquanto o régulo vizinho, herdeiro do Velho, com uma política sã, desenvolvia as suas terras, promovendo a felicidade do seu povo”;
10. Contos do Fantástico deve ser lido para se ganhar várias coisas, dentre elas relembrar algumas realidades dos tempos de outrora, desfrutar de uma leitura agradável (até pelo desconhecimento de alguns termos, o que é caricato), para se aprender novos termos (os tais arcaicos) e se poder avançar na direcção de novos momentos na nossa civilização.
11. É um mergulho nas amarras de um povo que tem tanto de belo como de inexplicável.
publicado por Revista Literatas às 08:08 | link | comentar